Há certas obras de arte que nos fazem estremecer. A arte tem esta capacidade de nos transformar, e quando isso acontece exaltamos o génio artístico. O génio é a nossa capacidade de espanto com as coisas e com os objectos que nos surpreende. Admiramos a busca incessante pela perfeição, a constante inquietação artística consagrada em cada trabalho apresentado. E é neste palco, neste espaço exuberante, que a arte Barroca se move apresentando-nos uma nova narrativa, congelando o momento, sublinhando os altos contrastes, sublimado o erotismo dos corpos, seduzindo os nossos sentidos através do Pathos (a paixão, o afeto, o excesso, até mesmo a dor e ou o sofrimento) pelo qual podemos experienciar. Perscrutamos em cada cinzelada a paixão dedicada; observamos em cada pincelada o sentimento denunciado; sublimamos nas notas musicais a harmonia sugerida; remimos as nossas culpas no detalhe demonstrado. E é neste enquadramento em particular que a obra de Gian Lorenzo Bernini se move. Uma arte centrada na estética clássica e no poder do erotismo, cujas obras mais significativas são o melhor exemplo: David, Apolo e Dafne, Rapto de Prosérpina [...] e num caso particular, que a torna única, o Êxtase de Santa Teresa. Mas há uma obra, um busto, que esconde uma paixão patológica entre Bernini e uma sedutora mulher com a qual manteve um relacionamento tórrido. Gian Lorenzo Bernini (Il Cavaliere, como era conhecido) tinha Roma a seus pés. O grande artista (escultor, arquitecto e pintor, entre outras artes) era um homem devoto, frequentador assíduo da igreja, circulava pelos corredores do Vaticano com a bonomia e a graça de todos Papas (que conheceu ao longo dos anos) e era também um assíduo frequentador dos palácios das famílias nobres. As encomendas abundavam e na sua oficina pululavam alguns dos melhores escultores assistentes. Absorto com tanto trabalho afirmava recorrentemente que não tinha tempo para pensar em casamento e os seus filhos eram as suas esculturas. Mas nem sempre foi assim. Como muitos outros artistas, teve sua vida pessoal marcada por relações e emoções complexas. Uma das histórias mais conhecidas relacionadas com a vida amorosa de Bernini envolveu a paixão por Costanza Bonarelli, esposa de um de seus assistentes, Matteo Bonarelli. O busto de Costanza realizado por Bernini é único, porque não resulta de uma encomenda particular. É uma obra privada que o artista pretendeu imortalizar a paixão experimentada. A falta de decoro de uma mulher casada testemunha o afeto que o escultor colocou nos pequenos detalhes. O rosto é marcado por expressões intensas e realizado com grande realismo técnico e psicológico. Assim, o busto além de evidenciar um penteado descuidado, sem estar escovado, tem a testa franzida que evidencia os enormes olhos, vivos, reveladores da tensão vivida. São espectadores e ao mesmo tempo deixam perscrutar a cumplicidade envolvida. É um retrato cujo erotismo presente é patenteado na camisa de dormir desabotoada e no elevado movimento sensual do decote, reforçado pelos lábios carnudos entreabertos, denunciando a forte ligação amorosa mantida pelos dois amantes. É um retrato físico e tempestuoso mantido em segredo, só interrompido pela descoberta de infidelidade de Costanza com o seu irmão, Luigi Bernini. Encolerizado com a traição levou Gian Lorenzo Bernini a um ato tresloucado: Il Cavaliere quase matou o seu irmão e mandou desfigurar a sua amante. Mas o que é que pode justificar tal atitude? Nada, diremos muitos de nós. Costanza, condenada por adultério e fornicação foi obrigada a recolher-se numa ordem religiosa[1]; Luigi foi exilado em Bolonha; enquanto Bernini admoestado pelo Papa Urbano VIII foi obrigado a pagar uma multa e a casar com Caterina Tezio[2]. Foi um período conturbado vivido por Bernini que coincidiu com o maior desaire da sua vida profissional. O Papa Urbano VIII tinha encomendado ao escultor uma nova fachada da Basílica de São Pedro, que o escultor desenhou. Duas torres sineiras de proporções monumentais e, em última análise, desastrosas: uma das torres sineiras cedeu e temia-se ameaçar a integridade estrutural da fachada do edifício. O vexame foi devastador porque foi o seu arqui-rival, arquitecto Borromini, que denunciou através do estudo das evidencias estruturais e da impossibilidade construtiva da ambiciosa obra de Bernini. Foram demolidas. Com a morte do papa Urbano VIIII, em 1644, e a eleição de Inocêncio X, Bernini perdeu o seu lugar privilegiado no Vaticano para seu rival Borromini.
Em 1647, os ventos sopram de feição, Bernini recebeu uma encomenda do Cardeal Federico Cornaro para uma capela funerária, para a sua família, na Igreja Santa Maria dela Vittoria dedicada a Santa Teresa D’Ávila (carmelitas descalças) seguindo as determinações Tridentinas que a arte religiosa deveria ser inteligível e realista, e servir acima de tudo, como estímulo emocional à religiosidade. Bernini dominava todas artes e depois de ler os poemas místicos de Santa Teresa d’Ávila revelou, em obra escultórica, ter experienciado todo aquele sentimento na sua vida terrena com Costanza...
A escultura resultante, “O Êxtase de Santa Teresa”, inserida na arquitectura da capela, é reconhecida por muitos críticos de arte como talvez a conquista suprema do poder do erotismo na escultura religiosa do século XVII.
[1] Domus Pia de Urbe (Mosteiro de Casa Pia)
[2] Mormando, Franco. Domenico Bernini: The Life of Gian Lorenzo Bernini: A Translation and Critical Edition, 2011.
[*] Costanza Bonarelli foi uma nobre, comerciante e negociante de arte italiana, descendente de uma família nobre de Siena. Ela é conhecida por ser retratada pelo artista Gian Lorenzo Bernini no busto agora exibido no Museu Nacional de Bargello em Florença, criado entre 1636 e 1639.