Êxtase de Santa Teresa

Êxtase de Santa Teresa de Gian Lorenzo Bernini, 1647–1652

Igreja de Santa Maria della Vittoria

Roma, 2023

fotografia: © Luís Carvalho Barreira

À descoberta do pathos na obra de Bernini.

 

Gian Lorenzo Bernini teve uma longa e profícua vida artística. Existem várias obras que marcam a genialidade do artista. E uma delas tem origem numa encomenda do Cardeal Cornaro: uma capela dedicada a Santa Teresa d’Ávila, na Igreja de Santa Maria dela Vittoria, espaço escolhido para a última morada da sua família. Bernini ainda não se tinha restabelecido do humilhante desaire; após uma das duas torres sineiras projectadas para a fachada da Basílica de São Pedro ter ameaçado ruir e por consequência mandada demolir. Ferido no orgulho, vexado por ter sido o seu arqui-rival, Borromini, a atestar a sua incompetência como arquitecto, era agora um homem com a alma dilacerada. Perdera a bonomia do Papa (Inocêncio X) e deixara de ter as encomendas ambicionadas. O outrora il cavaliere que era bajulado por toda a Roma, sublimou o revés do projecto arquitectónico com o pathos colérico, quando mandou desfigurar a cara da sua amante (Costanza Bonarelli) por partilhar o leito, com o seu irmão Luigi. Conhecedor dos limiares da paixão e do amor carnal, reviu-se nos poemas místicos de Santa Teresa e no empreendimento solicitado pelo Cardeal Cornado. O brio do artista levá-lo-á a realizar uma das mais belas obras escultóricas do Barroco: o “êxtase de Santa Teresa”. É uma obra onde o espaço cénico dá lugar à melhor síntese da arquitectura barroca: duas colunas coríntias de cada lado do altar são acompanhadas à sua ilharga por pilastras da mesma ordem que sustentam um frontão, em arco quebrado, abrindo o espaço à claraboia onde a luz “congela” o preciso momento da Transverberação[1] de Santa Teresa. Todo a capela foi concebida como obra total. A decoração excessiva, com ornamentos vegetais, com putis e querubins, aliada à utilização de mármores de várias cores reforçam o desenho da capela explicando o sentido da arte barroca assente na teatralidade e sedução dos sentidos. É neste palco que o dramatismo do acontecimento nos é sugerida. É neste local que presenciamos a capacidade de uma obra de arte de evocar emoções intensas, empatia e identificação no observador fruidor. O "Êxtase de Santa Teresa" de Bernini é uma obra que busca provocar uma resposta emocional intensa no espectador, evocando empatia e identificação com a experiência mística de Santa Teresa. Bernini coloca toda a atenção nos detalhes. Os espectadores ordenados em dois balcões (membros da família Cornado) que ladeiam o proscénio, onde a acção se desenrola, trocam olhares como quem sussurra inconfidências, fazendo com que a nossa participação voyeurista seja pró-activa. O nosso tento deambula, numa primeira leitura, pela a envolvência arquitectónica da capela, para terminar no momento da levitação de Santa Teresa. É a arte da sedução exaltada num preciso momento. O espectador é preso ao desenrolar do acontecimento; o crente é aprisionado pela intensa espiritualidade. O legado testemunho poético da beata Teresinha d´Ávila é de uma paixão tão intensa que as palavras – segundo ela – teimam a não acompanhar os sentidos vividos. É um amor indizível. Bernini atento e conhecedor de amores terrenos retrata o momento em que a mística espanhola, Santa Teresa, experimenta a transverberação do amor divino. Bernini encontrou no “médium” poético de Santa Teresa, para expressar a paixão por Deus, a palavra do escopro que o levaria a materializar valores terrenos. O triunfo da arte. Bernini retira do tosco bloco de mármore branco de Carrara as formas, esculpindo cada palavra em gestos, talhando cada detalhe a exaltação vivida. Bernini trabalhou com grande minúcia na representação da carne, das roupas e dos elementos circundantes. Isso contribui para a sensação de maior realismo e intensifica a resposta emocional do espectador à cena. A composição ganha dramatismo quando o Serafim segura uma seta (ardente) de ouro em riste pronto a desferir aquela seta eleita / ervada em sulcos de amor[2]. Transforma o hábito da beata num revolto movimento deixando a descoberto um pé singelo. Teresa levita revelando os detalhes anatómicos que a aproximam de um realismo fisiológico e psicológico. A expressão facial de Santa Teresa capta o momento em que está imersa em êxtase, de olhos revirados e com a boca entreaberta, em pasmos de prazer: Me atingiu com sua seta, / Nos meigos braços do Amor / Minh'alma aninhou-se quieta[3]. O seu rosto reflecte uma expressão de arrebatamento corporal, transmitindo a intensidade da sua experiência mística. Essa revelação facial evoca empatia e identificação no observador, partilhando a comoção de santa Teresa. Por último, a iluminação vinda da claraboia acentua os contrastes e a sensação de movimento na obra aumentam o pathos, enfatizando a conexão espiritual profunda e emocional entre a paixão terrena e o amor divino. Bernini não se desvia do seu programa artístico, segue as determinações Tridentinas que exalta para uma arte religiosa inteligível e realista, e servir acima de tudo, como estímulo emocional à religiosidade. Estamos, seguramente, perante uma obra onde o pathos evoca emoções intensas, empatia e identificação no presente censor. Uma obra onde a paixão é vivenciada por todos aqueles que exaltam os sentidos e vivida segundo as suas certezas.

 

Dilectus meus mihi

(meu amado é para mim)

 

Entreguei-me toda e assim

Os corações se hão trocado

Meu Amado é para mim,

E eu sou para o meu Amado.

 

Me atingiu com sua seta,

Nos meigos braços do Amor

Minh'alma aninhou-se quieta.

E a vida em outra, seleta,

Totalmente se há trocado:

Meu amado é para mim,

E eu sou para meu Amado.

 

Era aquela seta eleita

Ervada em sulcos de amor,

E minha alma ficou feita

Uma com o seu Criador.

Já não quero eu outro amor,

Que a Deus me tenho entregado:

Meu Amado é para mim,

E eu sou para meu Amado.

 


 

[1] Fenómeno místico: de almas atingidas por setas incandescentes arremessadas por Serafins aos amantes de Cristo.

[2] Sobre Aquelas Palavras: Dilectus meus Mihi, PIII

[3] Sobre Aquelas Palavras: Dilectus meus Mihi, PIII

Bernini: sob o signo do pathos

Costanza Bonarelli [*], 1638-9. Museo Nazionale del Bargello, Florença

Há certas obras de arte que nos fazem estremecer. A arte tem esta capacidade de nos transformar, e quando isso acontece exaltamos o génio artístico. O génio é a nossa capacidade de espanto com as coisas e com os objectos que nos surpreende. Admiramos a busca incessante pela perfeição, a constante inquietação artística consagrada em cada trabalho apresentado. E é neste palco, neste espaço exuberante, que a arte Barroca se move apresentando-nos uma nova narrativa, congelando o momento, sublinhando os altos contrastes, sublimado o erotismo dos corpos, seduzindo os nossos sentidos através do Pathos (a paixão, o afeto, o excesso, até mesmo a dor e ou o sofrimento) pelo qual podemos experienciar. Perscrutamos em cada cinzelada a paixão dedicada; observamos em cada pincelada o sentimento denunciado; sublimamos nas notas musicais a harmonia sugerida; remimos as nossas culpas no detalhe demonstrado. E é neste enquadramento em particular que a obra de Gian Lorenzo Bernini se move. Uma arte centrada na estética clássica e no poder do erotismo, cujas obras mais significativas são o melhor exemplo: David, Apolo e Dafne, Rapto de Prosérpina [...] e num caso particular, que a torna única, o Êxtase de Santa Teresa. Mas há uma obra, um busto, que esconde uma paixão patológica entre Bernini e uma sedutora mulher com a qual manteve um relacionamento tórrido. Gian Lorenzo Bernini (Il Cavaliere, como era conhecido) tinha Roma a seus pés. O grande artista (escultor, arquitecto e pintor, entre outras artes) era um homem devoto, frequentador assíduo da igreja, circulava pelos corredores do Vaticano com a bonomia e a graça de todos Papas (que conheceu ao longo dos anos) e era também um assíduo frequentador dos palácios das famílias nobres. As encomendas abundavam e na sua oficina pululavam alguns dos melhores escultores assistentes. Absorto com tanto trabalho afirmava recorrentemente que não tinha tempo para pensar em casamento e os seus filhos eram as suas esculturas. Mas nem sempre foi assim.  Como muitos outros artistas, teve sua vida pessoal marcada por relações e emoções complexas. Uma das histórias mais conhecidas relacionadas com a vida amorosa de Bernini envolveu a paixão por Costanza Bonarelli, esposa de um de seus assistentes, Matteo Bonarelli. O busto de Costanza realizado por Bernini é único, porque não resulta de uma encomenda particular. É uma obra privada que o artista pretendeu imortalizar a paixão experimentada. A falta de decoro de uma mulher casada testemunha o afeto que o escultor colocou nos pequenos detalhes. O rosto é marcado por expressões intensas e realizado com grande realismo técnico e psicológico. Assim, o busto além de evidenciar um penteado descuidado, sem estar escovado, tem a testa franzida que evidencia os enormes olhos, vivos, reveladores da tensão vivida. São espectadores e ao mesmo tempo deixam perscrutar a cumplicidade envolvida. É um retrato cujo erotismo presente é patenteado na camisa de dormir desabotoada e no elevado movimento sensual do decote, reforçado pelos lábios carnudos entreabertos, denunciando a forte ligação amorosa mantida pelos dois amantes. É um retrato físico e tempestuoso mantido em segredo, só interrompido pela descoberta de infidelidade de Costanza com o seu irmão, Luigi Bernini. Encolerizado com a traição levou Gian Lorenzo Bernini a um ato tresloucado: Il Cavaliere quase matou o seu irmão e mandou desfigurar a sua amante. Mas o que é que pode justificar tal atitude? Nada, diremos muitos de nós. Costanza, condenada por adultério e fornicação foi obrigada a recolher-se numa ordem religiosa[1]; Luigi foi exilado em Bolonha; enquanto Bernini admoestado pelo Papa Urbano VIII foi obrigado a pagar uma multa e a casar com Caterina Tezio[2]. Foi um período conturbado vivido por Bernini que coincidiu com o maior desaire da sua vida profissional. O Papa Urbano VIII tinha encomendado ao escultor uma nova fachada da Basílica de São Pedro, que o escultor desenhou. Duas torres sineiras de proporções monumentais e, em última análise, desastrosas: uma das torres sineiras cedeu e temia-se ameaçar a integridade estrutural da fachada do edifício. O vexame foi devastador porque foi o seu arqui-rival, arquitecto Borromini, que denunciou através do estudo das evidencias estruturais e da impossibilidade construtiva da ambiciosa obra de Bernini. Foram demolidas. Com a morte do papa Urbano VIIII, em 1644, e a eleição de Inocêncio X, Bernini perdeu o seu lugar privilegiado no Vaticano para seu rival Borromini.

Em 1647, os ventos sopram de feição, Bernini recebeu uma encomenda do Cardeal Federico Cornaro para uma capela funerária, para a sua família, na Igreja Santa Maria dela Vittoria dedicada a Santa Teresa D’Ávila (carmelitas descalças) seguindo as determinações Tridentinas que a arte religiosa deveria ser inteligível e realista, e servir acima de tudo, como estímulo emocional à religiosidade. Bernini dominava todas artes e depois de ler os poemas místicos de Santa Teresa d’Ávila revelou, em obra escultórica, ter experienciado todo aquele sentimento na sua vida terrena com Costanza...

Êxtase de Santa Teresa de Bernini

Igreja Santa Maria dela Vittoria

Roma

©Luís Barreira, Roma, 2023

A escultura resultante, “O Êxtase de Santa Teresa”, inserida na arquitectura da capela, é reconhecida por muitos críticos de arte como talvez a conquista suprema do poder do erotismo na escultura religiosa do século XVII. 


[1] Domus Pia de Urbe (Mosteiro de Casa Pia)

[2] Mormando, Franco. Domenico Bernini: The Life of Gian Lorenzo Bernini: A Translation and Critical Edition, 2011.

[*]  Costanza Bonarelli foi uma nobre, comerciante e negociante de arte italiana, descendente de uma família nobre de Siena. Ela é conhecida por ser retratada pelo artista Gian Lorenzo Bernini no busto agora exibido no Museu Nacional de Bargello em Florença, criado entre 1636 e 1639.

Lou Andreas-Salomé

Lou Andreas-Salomé, Paul Rée e Friedrich Nietzsche


Ouse, ouse... ouse tudo!!

Não tenha necessidade de nada!

Não tente adequar sua vida a modelos,

nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém.

Acredite: a vida lhe dará poucos presentes.

Se você quer uma vida, aprenda... a roubá-la!

Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer.

Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso:

algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!!


Uma mulher livre, um homem romântico e o “anticristo”. Poderia ser a sinopse de um filme[1] ou de um romance, mas não é. É uma fotografia icónica, registada por Jules Bonnet, em Lucerna de uma mulher chamada Lou Andreas-Salomé (à esquerda); de Paul Rée (ao centro) e de Friedrich Nietzsche (do lado direito). Uma tríada de grandes vultos da cultura europeia do final do século XIX. Não deixa de ser irónico que Lou Salomé, famosa pela sua beleza e de notável inteligência, apareça nesta encenação fotográfica a desempenhar um papel cruel, de flageladora, perante os seus amigos. Lou Salomé tinha 22 anos quando foi a um estúdio fotográfico, na companhia dos seus “obedientes” amantes[2], fazendo-se retratar em cima de uma carroça, brandindo o látego. O gesto poderia indiciar, numa rápida interpretação, uma simples brincadeira. Mas o que esta fotografia revela não é zombaria, é uma imagem que descobre o poder de uma mulher capaz de influenciar espíritos brilhantes. Ela dirige, conduz mentes apaixonadas à semelhança do idílico cenário que lhe dá suporte em forma de trompe-l’oeil. É tudo uma encenação romântica, uma confidência de amor e os seus mistérios. Uma carroça, puxada por dois ilustres filósofos, serve de metáfora entre a exaltação apolínea e a força dionisíaca do pensamento. Quem conduz quem, e quem é conduzido por quem!? Os dois homens deixam-se conduzir pela sugestiva proposta apresentada por Lou Salomé: uma viagem, uma vida partilhada em comum – winterplan -, pelos grandes centros europeus divulgando o conhecimento gerado pela tríada formada. É um “Hino à Vida[3]” que Lou haveria de materializa-lo em poema e Nietzsche compôs a música (tendo sido esta a única partitura que publicou em vida).

 

Hymn to Life / Hino à Vida

Surely, a friend loves a friend the way
That I love you, enigmatic life —
Whether I rejoiced or wept with you,
Whether you gave me joy or pain.

I love you with all your harms;
And if you must destroy me,
I wrest myself from your arms,
As a friend tears himself away from a friend’s breast.

I embrace you with all my strength!
Let all your flames ignite me,
Let me in the ardor of the struggle
Probe your enigma ever deeper.

To live and think millennia!
Enclose me now in both your arms:
If you have no more joy to give me —
Well then—there still remains your pain.

 

Lebensgebet, Lou Andreas-Salomé

 

A fotografia podia servir para uma acção de marketing publicitário, mas o que ela revela, nos tons que teimam desvanecer, é um documentado compromisso entre os três amigos. É um pacto estabelecido entre eles a nível intelectual que foi profícuo, exercendo uma influência na filosofia, na história da cultura europeia, com repercussões, até, na arte moderna. Desde muito jovem que Lou Salomé, sedenta de independência e impaciente por viver, manifesta interesse em aprofundar o estudo em teologia, filosofia e literatura (francesa e alemã). Após a desolação com a morte do pai, a sua descrença em Deus, levá-la-á a recorrer a Hendrik Gillot, um pregador conhecido pelas suas ideias subversivas, para a ajudar a restabelecer a sua fé em Deus. Lou Salomé vai estudar teologia, filosofia e literatura (francesa e alemã) ministrada pelo Hendrik Gillot, por quem se apaixonou. Aliás, a paixão foi mútua. A intrepidez, a inteligência e a sede de aprender de Lou atraíram Gillot e, pouco tempo passado, pediu-a em casamento. Pedido fracassado; recusado por Lou. O fascínio pelo mestre gorou-se quando ele pretendeu ocupar o espaço conferido pelo casamento: para Lou, no seu universo, não havia lugar para o desejo, nem para o sexo em exclusividade. Lou Salomé desde muito cedo sonhava com uma sociedade liberta de falsas moralidades lutando incansavelmente contra os seus dogmas incluindo as amarras da religião. Defendia ousadamente os direitos das mulheres, assim como a importância da sua participação na sociedade. Em suma, era uma mente crítica que a guiava numa atitude de descrença na sociedade e, em particular, na religião. E ficava fascinada quando conhecia alguém, irreverente nas afirmações, firme nas convicções, sobretudo, com aquilo que ela gostaria de auscultar. Se as esperanças de pacificação com a religião e com Deus foi, inicialmente, um dos seus propósitos,  desapareceram quando, em 1880, Salomé, doente, na companhia de sua mãe, se mudaram para Zurique, na Suíça (um dos raros países tolerantes que aceitava mulheres nos cursos superiores) afim de ingressar na universidade e restabelecer a sua saúde física. A sua estada em Zurique durou dois anos e em 1882, tinha Lou 21 anos, foram para Roma onde conheceu Paul Rée e Friedrich Nietzsche. Um feliz encontro, uma comunhão intelectual em perfeita sintonia. Um triangulo amoroso estabelecido, uma vida intelectual partilhada que durou ao longo de três anos. Qualidades de referência verificáveis, certamente, por eles, em Lou como modelo cujo o brilho intelectual e a audácia os fascinavam. Afinidades intelectuais que uniram estes três amigos, atributos sempre presentes no pensamento nietzschiano. Durante este período, Lou terá exercido uma influência fundamental na obra de Nietzsche, reconhecida pelo filósofo no livro, Assim falava Zaratustra[4]. Mais tarde, num dos últimos livros de Nietzsche, Ecce Homo, escrito como se fosse as mnemografias da sua obra e da sua vida, dedicado a Lou Andreas-Salomé, chegou a afirmar ser “de longe, a pessoa mais brilhante que conheceu”. Mas quem é esta mulher? Será [ela] o Super-homem que Nietzsche se refere; o Homem hiperbóreo, aquele que se eleva mais alto e se supera a si mesmo? Uma espécie de alter-ego do seu pensamento? Há um nítido acatamento observável na fotografia de Jules Bonnet e não é somente estética: os homens que ocupam o lugar dos jumentos aparecem apoucados pela paixão brandida por Lou Salomé. É nessa exaltação que, segundo Nietzsche, reside a força vital impulsionadora, da acção, da criatividade e da busca pela excelência. Os dois homens baqueiam quando se aproximam de Lou. O coração [de Nietzsche] foi fraco, o espírito sucumbiu ao pedi-la em casamento: foi-lhe negado[5]. Não foi o primeiro, não será o último a ouvir as palavras que lhes dilaceraram a alma[6]. O homem hiperbóreo rende-se à mulher fatal. O amor fati de Nietzsche transforma-se em decepção e amargura. Torna-se mais taciturno. Entrega-se à embriaguez do ópio, o único que o salva dessa dor lancinante, ao ponto de pensar em suicídio. Refugia-se no locus horrendus das montanhas de Sils-Maria (Suíça) que ele tanto amava, exaltando-as: a filosofia é viver nas altas montanhas. É junto ao Lago Sils que, depois de amadurecida a experiência vivida, tem a revelação de Zaratustra[7], uma obra profética que ele virá a negar, esse estatuto de idolatria, em Ecce Homo. Porém, a ligação intelectual entre Lou e Nietzsche manteve-se até ao fim da vida. Paixões desavindas[8]; Nietzsche afasta-se de Paul Rée[9] que continua na vida de Lou. Uma lufada de amor fresco na vida do jogador compulsivo que foi Paul Rée, agora encontrando em Lou Salomé o seu porto de abrigo, não só de ternura e atenção redobrada, como de apaziguamento necessário à voracidade da sociedade que alimentava as histórias de escândalos da vida privada[10]. Em 1887, Lou Salomé casa-se com Friedrich Carl Andreas, um insigne orientalista. Um casamento duradouro, aberto, permitindo a Lou outros relacionamentos. Todavia, em 1897, Lou Andreas-Salomé conheceu (René) Rainer Maria Rilke, poeta e novelista, (talvez o mais amado?) com o qual manteve um amor poético, onde Lou, fascinada pela virilidade suavizada pela doçura, partilha a nível intelectual e emocional, em correspondência privada.

 

Nunca te vi, que não tivesse o desejo de te rezar. Nunca te ouvi, que não tivesse o desejo de acreditar em ti. Nunca te esperei, sem o desejo de sofrer por ti. Nunca te desejei, sem ter também o direito de me ajoelhar à tua frente. Sou para ti como o bastão para o caminhante, mas sem te apoiar. Sou para ti como o cetro é para o rei, mas sem te enriquecer. Sou para ti como a última pequena estrela é para a noite, ainda que a noite mal a distinguisse e ignorasse a sua cintilação. [11]” René

 

O homem romântico da fotografia, Paul Rée, encontra-se destroçado, irá dedicar-se a um trabalho altruísta na comunidade onde habita e, no local onde Lou Salomé lhe negou o último pedido de casamento, escorregou caindo pelo penhasco vindo a morrer (28 de Outubro de 1901). Rée havia declarado, não muito antes de sua morte, “Eu tenho que filosofar. Quando fico sem material sobre o qual filosofar, é melhor eu morrer[12]. Apesar de sua oposição ao casamento e de seus relacionamentos abertos com outros homens, Salomé e Andreas permaneceram casados de 1887 até sua morte em 1930. Depois destes atropelos na vida de Lou entregou-se à psicanálise o que levaria a um relacionamento intenso com Sigmund Freud. Após a morte de Friedrich Carl Andreas, em 1930, Salomé dedicou o resto da sua vida a promover o legado intelectual de Nietzsche e Freud. A brilhante ensaísta[13], autora de Die Erotik, foi a mulher que encantou a elite intelectual europeia. Na figura de Lou confundem-se, muita das vezes, a personagem histórica e a lenda. Lou era, sobretudo, uma sapiossexual e o seu erotismo estabelecia-se ao nível da maiêutica intelectual. O amor e a paixão foram, por vezes, atropelos na vida de Lou Salomé, cuja ousadia, propagada nas suas acções, levá-la-á a afirmar [nas suas Memórias] que para quem ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora, é solidão, isolamento, cada vez mais intenso e profundo. O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se, unir-se a outra pessoa. (...) O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo por si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser: é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz, uma escolha e um chamado para longe[14].

O brilhante registo fotográfico, que nos propusemos analisar, sintetiza em termos formais o triângulo amoroso, o pathos vivido por Lou Andreas-Salomé. Não seriam estes os únicos amores da sua vida, muitos outros se cruzaram na sua vida e com os quais Lou reafirmou, sempre, o seu espírito livre: “Sempre serei fiel às lembranças. Nunca o serei aos homens”.

 

 

Texto, 2023 © Luís Carvalho Barreira

 

 


NOTAS:

[1] Há um filme sobre a vida de LOU Andreas-Salomé: a audácia de ser livre, de Cordula Kablitz-Post.

[2] Lou Salomé, Paul Rée e Friedrich Nietzsche viveram juntos desde 1882 a 1885.

[3] A composição (musical) Hino à Vida foi parcialmente feita por Nietzsche em agosto e setembro de 1882, apoiada pela segunda estrofe do poema Lebensgebet de Lou Andreas-Salomé”. in wikipedia

[4]  Notas sobre o Zaratustra de Nietzsche. Por André Vinícius Pessôa. Revista Garrafa v. 5, n. 14 (2007)

[5] O fim da relação de Nietzsche com Salomé foi expresso por ele, em dezembro de 1882, em carta dirigida a Overbeck, seu editor: “Minha relação com Lou está nos últimos e mais dolorosos momentos. Pelo menos assim o creio hoje. Mais tarde – se houver um mais tarde – quero dizer uma palavra a respeito. Compaixão, meu caro amigo, é uma espécie de inferno, digam o que quiserem os adeptos de Schopenhauer.”

[6] Lou Salomé, nas suas Memórias, deixou transparecer, fugiu de Gillot, que lhe surgia como um obstáculo à sua liberdade, exactamente como fugirá, mais tarde, de outras relações com Paul Rée, Nietzsche e Rilke, quando a pediram em casamento.

[7] Prideaux, Sue, Eu sou Dinamite!, A vida de Friedrich Nietzsche, Círculo de Leitores, 2018.

[8] https://pt.wikipedia.org/wiki/Paul_Rée

[9] Uma carta de Rée, de novembro de 1897, sobre sua relação com Nietzsche, contém as seguintes frases condenatórias: “Nunca pude Lê-lo. Ele é rico em espírito e pobre em ideias”. “Todos fazem tudo por vaidade, mas a vaidade dele é patológica, irritantemente doentia. Ela o levou a produzir, quando são, grandes obras, de modo normal, já enquanto doente, podendo pensar e escrever com rara frequência, e temendo sobretudo não voltar a fazê-lo nunca mais, a todo custo queria conquistar a fama; Sua vaidade doentia produziu algo doentio, muitas vezes brilhante e belo, mas essencialmente deformado, patológico e demente; não um filosofar, mas sim um delirar!” in wikipedia 

[10] Histórias que remeteram Lou para um silêncio do qual não voltou a sair. (Mesmo quando Freud, muitos anos mais tarde, a instar a falar sobre o assunto, ela recusa). Respondeu sempre com um muro de silêncio que não a beneficiava, uma vez que não contribuía para clarificar a situação.

[11] Correspondência Amorosa, Rainer Maria Rilke e Lou Andreas-Salomé. Tradução Manuel Alberto, Relógio D’ Água Editores, 1994, Lisboa.

[12] Safranski 2002, p. 183.

[13] Ela foi uma das primeiras psicanalistas e uma das primeiras mulheres a escrever psicanaliticamente sobre a sexualidade feminina. Durante sua vida, ela escreveu muitos romances, peças de teatro e ensaios, incluindo “Hymn to Life”. A biografia escrita por Stéphane Michaud procura esclarecer os contornos que constituíram a personalidade controversa desta mulher que foi romancista, poeta, ensaísta, psicanalista e uma pioneira do modernismo europeu.

[14] Lou Andreas-Salomé

Françoise Gilot (1921-2023)

Quem é Françoise Gilot?

Segundo Picasso, Françoise Gilot era "a mulher que diz não".

A história conta-se com uma imagem que vale mais do que mil palavras. A composição fotográfica é perfeita: o equilíbrio pelas linhas horizontais (desenhadas pelas ondas na rebentação e pelo mar bem definido na linha-do-horizonte) é reforçado pela verticalidade do guarda-sol (justapondo-se na mediana vertical), enquanto que o dinamismo é-nos sugerido pela perspectiva linear das figuras em diferentes escalas reforçadas, num vai e vem constante, entre o incógnito banhista, passando pelo acólito cavalheiro segurando o baldaquino, até à jovem sortuda que se delicia com tanta distinção. Tudo isto é uma bela e cuidada encenação. Uma fotografia de Robert Capa realizada em Golfe-Juan, França, 1948. Françoise Gilot era uma jovem pintora quando conheceu Picasso, um artista maduro e consagrado. Gilot era admiradora da obra de Picasso quando o conheceu num café em Paris. Ela tinha 21 anos, enquanto Picasso tinha 61 anos e atravessava momentos conturbados com Dora Maar (sexta esposa). Picasso, o malaguenho, amante de touradas, provocador, necessitava de alimentar o génio com alguém que fosse uma nova fonte de inspiração, de uma paixão tórrida que só as mulheres lhe souberam dar. Françoise Gilot, em 1943, era estudante de direito quando conheceu Picasso e largou os estudos para viver ao lado do artista. Os dois tiveram dois filhos: Claude e Paloma nascidos em 1947 e em 1949. Porém, os casos de Picasso com outras mulheres e sua natureza abusiva fizeram com que os dois se separassem em 1953 após uma década juntos. A separação foi difícil, revelada no livro, Vida com Picasso, publicado em 1964, no qual Gilot partilha as suas memórias e experiências com Picasso. O livro dá-nos uma perspectiva diferente sobre a relação e as complexidades de viver com o artista, o génio e o homem.

Françoise Gilot morreu hoje, 6.06.2023, aos 102 anos, a mulher que disse não a Picasso.

texto, 2023 © Luís Carvalho Barreira

Lydia Delectorkaya

Em 1910, Matisse tinha 40 anos quando pintou, em Paris, A Dança encomendada pelo colecionador russo Sergey Shchukin. Nesse mesmo ano nascia em Tomsk, Rússia, Lydia Delectorkaya. Filha de uma família nobre e culta russa que durante a Revolução de Outubro (1918) se refugiou em Harbin, Manchúria, na China e depois em Paris. A perda dos pais muito cedo, uma vida precária, assim como um casamento fugaz quando tinha 20 anos, fizeram com que a jovem russa procurasse desesperadamente um emprego que lhe permitisse alguma segurança. Chegada a Paris, em 1928, foi figurante, dançarina e modelo para alguns artistas. O gosto pela arte desde muito cedo fez parte do universo cultural da jovem russa, quiçá, o seu desígnio de vida. Henri Matisse já era um artista reconhecido quando, em 1916, se mudou para Nice com a família até ao final da sua vida, em 1954. O pai dos Fauves, como é conhecido, rivalizava com outros artistas de grande nomeada. A “cacofonia demoníaca” – como apelidaram alguns críticos no Salão de Outono – há muito que o atento mercado da arte era disputado por grandes colecionadores. Matisse posiciona-se dentro de uma elite de artistas invejados. Em 1932 e em resposta a um anúncio para assistente no atelier de Matisse, a jovem russa pode sonhar com a estabilidade desejada viajando para Nice. Lydia tinha 22 anos e Matisse, de 62 anos. O pintor estava a braços com uma nova encomenda feita, por Albert C. Barnes, para um fresco de grandes dimensões (465X385 cm) a ser realizado em Merion, Filadélfia[1]. Era um trabalho árduo para o artista sexagenário. Vários desenhos e estudos foram feitos em papel de várias cores (à escala natural) e redimensionados, recortados, com uma tesoura, conforme a simetria, o equilíbrio, pretendido pelo artista. Matisse conseguiu unir o desenho e a cor num gesto rico em reverberações plásticas. A obra exigia algum vigor físico e demorou quase três anos a ser concluída. O tempo suficiente para que o Mestre reconhecesse a ajuda e o profissionalismo de Lydia. Terminada a obra, acabou também a relação laboral que os associava.

Todavia, Madame Matisse adoeceu e precisava de alguns cuidados. Matisse necessitava de uma pessoa que gerisse a sua agenda profissional; carecia de alguém a quem depositasse confiança na governação da casa e do atelier. A família tinha um nome em mente para desempenhar essa tarefa e a escolha recaiu em Lydia Delectorkaya. Enquanto Madame Matisse esteve doente, Lydia provou não ser só uma boa cuidadora, mas também foi uma excelente governante e secretária. Paulatinamente, Lydia foi assumindo todos os assuntos pessoais da família Matisse chamando à atenção do pintor. A graciosidade de Lydia desperta a indiscrição do pintor. Ela foi importante na vida diária de Matisse organizando-lhe o atelier, preparando-lhe os materiais, posando para vários quadros realizados neste período. A relação entre Matisse e Lydia era de profunda amizade e colaboração artística. Desmentida, talvez, por parte de Amélie Noellie Matisse-Parayre (Madame Matisse) que, em 1939, justifica o pedido de divórcio pela relação ambígua mantida entre Matisse e Lydia. O processo de divórcio nunca foi iniciado, mas o casal viveu separadamente pelo resto das suas vidas. Motivos seguramente fortes obrigaram Amélie a dolorosa decisão. Ciúmes de uma nova musa? Ou magoada pelo espaço ocupado pela nova governanta? Desde o aparecimento de Lydia, e a sua estada em Nice, que a pintura de Matisse sofreu uma mudança formal e estética. A modelação dos corpos, as luzes suaves sugerem espaços cada vez mais vibrantes. O fascínio pelo o Oriente e pela cultura árabe, locais visitados pelo o artista, levá-lo-á a uma nova pesquisa formal e estética. O seu traço baseado muito na linha arabesca reforçam a “luz negra[2]” por ele defendida. O cromatismo é explorado entre as cores rosa e o azul. Os nus vagueiam entre o equilíbrio da composição e o nivelamento dos corpos. O tema da janela e do corpo feminino (nu) aparece no seu trabalho realizado neste período. O exotismo das odaliscas assim como os trajes russos fazem parte da renovada temática matissiana. Lydia foi retratada em muitas das obras do artista: O Nu Rosa (1935), várias Odaliscas (1937) além de retratos personalizados de Lydia são registos de uma musa em que Matisse “preservou a sua beleza para a eternidade” (frase atribuída a Picasso). Quando as forças do artista se desvaneceram (ele sofria de asma, de artrite e, nos últimos anos, contraiu um cancro) Lydia esteve sempre presente confortando-o e defendo os seus interesses com os negociantes de arte. Aliás, Lydia criou a sua coleção de arte ao longo do tempo, investindo o ordenado recebido em obras de Matisse[3]. Após a morte de Matisse ela regressou a Paris fazendo trabalhos de tradução de russo, nomeadamente do escritor Konstantin Paustovsky, que conheceu na década de 50, para francês e organizou monografias, exposições, encontros sobre Matisse. Durante esses encontros e quando interrogada sobre o relacionamento que teve com o artista, Lydia nunca se esquivou, mas nunca deu uma resposta direta[4]. Mas foi evidente que o artista francês, o seu talento, o seu trabalho é fruto de uma cumplicidade mantida tornando-se o verdeiro sentido de sua vida. Uma vida dividida entre dois amores: a arte de Matisse e a terra que a viu nascer, a Rússia. A ela se deve o maior acervo de obras de Matisse estarem em museus russos. Um dia ela aclamou: “Eu dei à França Paustovsky, e à Rússia Matisse!” Foi esse o último desejo de Lydia Delectorskaya: ser sepultada na Rússia. Ela morre em Paris em 1998, aos 88 anos, mais tarde transladada para Pavlovsk, perto de São Petersburgo, e numa réplica da lápide original pode-se ler: “Matisse preservou sua beleza para a eternidade

Matisse, Nu Rosa, 1935



texto, 2002 © Luís Carvalho Barreira


[1] Fundação Barnes, Merion, Filadélfia, Estados Unidos da América. Albert Barnes foi um colecionador de arte tendo pagado pelo mural 30 mil dólares.

[2] Matisse considerava o preto a cor intensa, a cor absolta. A cor que faz a ligação entre todas as cores, que a reforçam.

[3] Matisse tinha como hábito de presentear, regularmente, Lydia com obras de arte de sua autoria.

[4] Lydia escreveu várias monografias dedicadas a Matisse.

Lee Miller

Lee Miller fotografada por Man Ray,

Elizabeth Lee Miller (1907-1977)

 

A arte move-se por grandes paixões. E raros são os percursos artísticos que não sejam acompanhados pela dor ou amargura vivenciada. Tenho vindo a publicar algumas estórias que fizeram história das “mulheres e a arte” numa tentativa de reabilitar uma visão deliberadamente esquecida. Grandes mulheres artistas, obras esquecidas, vidas apaixonadas que permanecem rasuradas. É o caso de Lee Miller, uma jovem que, aos vinte anos, ganhou notoriedade como modelo na capa da revista Vogue (março de 1927). A beleza de Lee Miller fez-se logo notar nos vários trabalhos realizados de moda e publicados nas revistas especializadas. Lee Miller não era apenas um modelo de moda, ela tinha outras ambições não só como fotógrafa, mas também como artista plástica. Paris era o seu objectivo, a arte era a sua pretensão. A cidade das luzes era o centro cultural donde emanava os grandes movimentos artísticos do início do século XX. A chamada Vanguarda. Paris era desejada, cobiçada, por todos aqueles que almejavam participar nesse momento histórico e civilizacional. Um escol de artistas oriundos de todo os continentes, chegados a Paris, fazem-se notar pela sua irreverência e pela sua ousadia no mundo cultural. Estávamos num período hedonista onde a provocação protagonizada pelo movimento dadaísta ganhavam mais adeptos e seguidores. Disso fez eco a escritora e mecenas, americana, Gertrude Stein ao publicitar várias crónicas enaltecendo a vida parisiense, nomeadamente a cultura artística. Os irmãos de Gertrude Stein instalam-se em Paris, na Rue de Fleurus, 27, um apartamento de dois pisos, e começam a sua colecção de arte: obras de Picasso e Matisse, entre outros, são exibidas nos saraus por eles patrocinados. O interesse por obras de arte desperta curiosidade em novos colecionadores. O novo mundo estava ávido em acompanhar a modernidade europeia. As viagens transatlânticas começam a fazer-se com regularidade por parte de uma burguesia endinheirada, com estadas cada vez mais prolongadas, reforçando o lado mítico da vida parisiense. Lee Miller é atraída pelo fascínio europeu e viaja para Paris, em 1929, com o objectivo de seduzir o meio artístico, não só com a sua beleza, mas também com a vontade e determinação em afirmar-se na vida artística europeia. Chegada a Paris, bateu à porta de Man Ray e pediu-lhe para que a aceitasse (como aluna) no seu estúdio com o propósito de aprofundar os conhecimentos técnicos e teóricos da arte fotográfica. Man Ray recusou, dizendo que não aceitava alunos; mas logo se tornou sua assistente e modelo e, num piscar de olhos, Lee Miller passou a ser a sua musa e amante[1]. Foi uma simbiose perfeita entre a beleza, a paixão e a arte registada pela câmara de Man Ray. O tempo foi congelado nas inúmeras fotografias Lee Miller. A paixão foi imortalizada nesses papéis impregnados em sais de prata. Em 1932, participa no movimento surrealista e entre o seu círculo de amizades estavam outros artistas como Pablo Picasso, Paul Éluard e Jean Cocteau que a convidou a participar no elenco do filme “O sangue de um Poeta” cabendo-lhe a personagem de uma mulher (deusa) que se transforma em estátua grega simbolizando a perfeição. Lee Miller ganha estatuto e reconhecimento entre os seus pares realizando várias fotografias com um cunho pessoal, apesar de muitas delas se confundirem com as do Man Ray. A modelo, a musa, a amante rivaliza agora com o seu mestre. Uma série de fotografias pertencentes a Lee Miller cuja autoria era reivindicada por Man Ray foi o pomo da discórdia entre os dois amantes. Colérico, Man Ray, empunhou um x-ato e agrediu-a no pescoço. Um acto tempestuoso, uma ruptura anunciada. A devastadora separação dos “artistas amantes” foi inevitável.

“Objecto Indestrutível”, 1933

 Man Ray, abalado pelo desenlace, nunca se recompôs desse sofrimento. Sublimará a dor numa peça “Objecto Indestrutível[2]”, 1933, em que coloca o olho recortado de Lee no ponteiro do metrómano: segundo Man Ray, escrito em anexo à peça, é “um olho da fotografia de alguém que foi amada, mas não é mais vista”. Prostrado, pintará um quadro (surrealista) com uns lábios (de Lee Miller) sobrevoando o Observatório de Paris. Lee Miller regressa a New York, em 1932, onde abriu um estúdio de fotografia em parceria com o seu irmão Erik que trabalhava com o fotógrafo de moda Toni von Horn[3]. Em 1937, a musa surrealista era agora correspondente de guerra, como fotógrafa, durante a Segunda Guerra Mundial criando um registo fotojornalístico único. A fotógrafa está de regresso à Europa e além de ter visto os seus trabalhos como repórter divulgados e reconhecidos, foi também tempo para se reconciliar com o seu antigo amante tornando-se amiga até ao final da vida. Foi uma espécie de armistício amoroso. Ela agora estava obstinada em denunciar os horrores da Guerra e de todas as fotografias do conflito mundial aquela que melhor sintetiza em perfeição entre a arte e o horror é aquela que Lee Miller se deixa fotografar, pelo David E. Scherman, fotógrafo da "Life" e seu amante, na banheira do apartamento do Adolfo Hitler no momento em que foi anunciada a morte do ditador nazi. Esta fotografia fará história não só pelo momento insólito, o banho da fotógrafa, mas também pelo o horror da guerra representada: as botas enlameadas, o retrato do Fuhrer ainda presente em cima da banheira fazem parte da composição que nos instiga para uma leitura irónica entre o Bem e o Mal representada pela figura perversa. Scherman haveria de afirmar, mais tarde, “que em toda a guerra não encontrou ninguém com mais ódio aos nazis do que ela”.  Em 1947, a vida tende para a normalidade e Lee Miller casa com Roland Penrose, um artista e colecionador britânico. Dessa união nasce um filho, Antony Penrose e é pelo testemunho do filho que se sabe da verdadeira amargura de Lee Miller: “Ela [Lee Miller] ficou muito feliz em permitir que suas fotografias fossem publicadas sob o nome de Man Ray”.  A paixão, “o amor louco”, era tão forte que “era como se fôssemos a mesma pessoa, então não importava”.

Lee Miller fotografada por David E. Scherman, 1945

 

A l'heure de l'observatoire, les Amoureux, 1932-34

créditos: arthistoryproject

 

Texto, 2023 © Luís Carvalho Barreira

 


[1] Charles Darwent, ed. (27 de janeiro de 2013). «Man crush: When Man Ray met Lee Miller». The Independent.

[2] Man Ray, faz alusão à força do desejo sexual criando um “readymade”: “Objecto Indestrutível”, 1923. Em 1933, quando a amante o abandonou Man Ray acrescentou o olho de Lee Miller ao “Objecto a ser destruído”. Em 1957, um grupo de estudantes destruiu o metrónomo durante uma exposição Dada, em Paris.

[3] Nicole Olmos (ed.). «The Life of Lee Miller, From Fashion To War Photography». The Culture Trip.

 

Suzanne Valadon - Cher petit Biqui...

Suzanne Valadon e o seu filho Maurice

Suzanne Valadon 

 

Marie-Clémentine Valade (Suzanne Valadon) foi uma pintora francesa pós-impressionista e uma personalidade marcante na vida artística parisiense. Filha de mãe solteira, sem recursos financeiros, Suzanne foi garçonete nos cafés de Montmartre e acrobata em espectáculos circenses; nomeadamente nos cabarets mais conhecidos de Paris como o Le Chat Noir. Eram lugares de encontros e desencontros. Eram, sobretudo, espaços de tertúlias de poetas e artistas. E é nesse cabaret, Le Chat Noir, que Suzanne conheceu Miquel Utrillo, um artista e crítico de arte catalão, por quem sentiu uma atração graciosa tornando-se amantes. Utrillo, um republicano liberal, era casado com Ramona Morlius i Borrás, e estava em Paris exilado (desde 1867 a 1882). Desse “desencontro” nasceu Maurice (1883) sem que, Suzanne, nunca tenha mencionado o nome do pai. Utrillo haveria de regressar a Paris, mais tarde, em 1889, aquando da Exposição Universal de Paris, tendo-se verificado um encontro com Suzanne afim de reconhecer legalmente a paternidade do seu filho, Maurice Utrillo Valadon. Suzanne não é mais acrobata. Após uma queda, lesionou a coluna, retirou-se do circo tornando-se modelo de alguns dos melhores pintores da época: o seu charme vagabundeia nas telas de Renoir, Toulouse-Lautrec e Puvis de Chavannes. O seu encanto arrasta consigo outras paixões. Sob a protecção de Edgar Degas iniciou-se no desenho e na pintura tornando-se, pouco tempo depois, na primeira mulher admitida na Société Nationale des Beaux-Arts.[1]Suzanne Valadon foi admirada pelos seus pares. O seu espólio atesta essa qualidade artística. A sua paixão entregue à pintura fez-lhe esquecer outros “aborrecimentos”. Em 1893, o grande compositor Erik Satie apaixonou-se por Suzanne. Foi a única história de amor conhecida de Erik Satie e durou apenas cinco meses. Satie ficou muito afectado pela separação e pela dor causada por este desenlace. Com a alma dilacerada, compôs uma grande obra, Vexations[2](aborrecimentos), cuja melodia estava destinada a ser repetida oitocentos e quarenta vezes seguidas (isto é, ao longo de doze a vinte e quatro horas). O compositor consumido se transforma em poeta e escreve esta magnífica declaração epistolar: Cher petit Biqui...

 

Erik Satie e Suzanne Valadon


Impossible
de rester sans penser à tout
ton être; tu es en moi toute entière; partout
je ne vois que tes yeux
exquis, tes mains douces
et tes petits pieds d’enfant.
Toi tu es heureuse; ce n’est pas
ma pauvre pensée qui ridera ton front transparent ;
non plus que l’ennui de ne point me voir.
Pour moi il n’y a que la glaciale
solitude qui met du vide dans la tête
et de la tristesse plein le cœur.
N’oublie pas que ton pauvre ami
espère te voir au moins à un de ces trois rendez-vous:
1° Ce soir à 9 heures moins le quart de chez moi
2° Demain matin encore chez moi
3° Demain soir chez Devé (Maison Olivier)
J’ajoute, Biqui chéri, que je ne me mettrai
nullement en furie si tu ne peux venir à ces rendez-vous;
maintenant je suis devenu terriblement raisonnable;
et malgré
le grand bonheur que j’ai à te voir
je commence à comprendre que tu ne peux point toujours
faire ce que tu veux.
Tu vois, petit Biqui, qu’il y a commencement à tout.
Je t’embrasse sur le cœur.

 

 

Texto, 1998 – 2023 © Luís Carvalho Barreira







[1] Marques, Luiz, Catálogo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Arte Francesa e Escola de Paris. II, pág. 176

[2] A misteriosa partitura foi descoberta após a morte do compositor, por John Cage.

Suzon de Édouard Manet

Édouard Manet (1832-1883)

Un bar aux Folies-Bergère, 1882

Suzon (garçonete)

Óleo s/tela [130 X 96 cm]

Período: Realismo / Impressionismo

The Courtauld Gallery Londres

Suzon é o nome desta jovem mulher que se encontra por trás do balcão, num bar do Folies-Bergère. Este é o último testemunho da vida atribulada do pintor Édouard Manet (1832-1883). O realismo social retratado neste quadro esvai-se nas pinceladas rápidas e imprecisas como a vida do pintor. São seguramente pinceladas impressionistas. Agitadas como as pessoas reflectidas no enorme espelho que serve de cenário ao quadro. Um lugar mágico que, como disse Maurice Merleau-Ponty, transforma “as coisas em espectáculos, os espectáculos em coisas, eu nos outros e os outros em mim”. É seguramente uma imagem, quase narcísica, que nos faz participar no acontecido. Nós (espectadores) vemos o que ela vê. Os pés de um acrobata num trapézio, no canto superior esquerdo, alerta-nos para o que está a acontecer entre as várias cartolas que se encontram, em baixo, a disputar as mulheres disponíveis. Alheios, provavelmente, aos tumultos políticos dos nacionalismos que assolam por toda a Europa e em França, em particular, ao sentimento anti-alemão (após a derrota na guerra Franco-Prussiana) ainda presente, afogam as mágoas em álcool e entregam-se à vida mundana que o Folies-Bergère pode obsequiar. Um enorme candelabro, sem recorte nem definição executado através de pinceladas fortes e justapostas, serve para reforçar a nossa atenção na garçonete situada no centro da composição. É uma jovem, loira, de rosto redondo, vestida com um corpete de veludo preto, generosamente decotado e arrematado por uma renda deixando a descoberto um pingente, seguro por uma fita negra, que repousa no seu regaço. Um pequeno ramo de flores eleva a sequência de botões alinhados, bem abotoados, sublinhando a beleza da pessoa retratada. Tem uma plasticidade muito mais próxima do Realismo onde Manet se fundeou e que fez questão em reforçar no diferente tratamento pictórico e plástico dado à personagem crucial. Ela está estática, com as duas mãos viradas para o seu interior assentes no balcão. Tem um olhar circunspecto enquanto atende um cliente que nós subentendemos, somente, pelo reflexo verificado no espelho. Esse homem não existe. É um fantasma! C’est un fantôme! O seu rosto apresenta-nos um olhar vazio fixado num plano terreno: num foco no infinito, num pensamento ausente. Ela não esboça atenção, nem sequer um leve sorriso de delicadeza. Pelo contrário, o que o reflexo ao espelho nos apresenta, é uma figura ligeiramente curvada como quem escuta as insondáveis palavras do cavalheiro. Ela não oferece nada. Não vende nada, apesar das inúmeras garrafas ao seu redor. Ela não se oferece... ela foi convidada a posar[1] para a última obra do pintor e assiste à inexorável decadência do pintor. Manet está doente; gravemente doente, com uma paralisia parcial provocada pela sífilis que contraiu. Em 1883, Manet foi-lhe amputada a perna esquerda e devido à gangrena morreu dias depois.


texto, 2001 © Luis Carvalho Barreira


[1] A mulher no bar é uma pessoa real, conhecida como Suzon, que trabalhava no Folies-Bergère no início da década de 1880. Para a sua pintura, Manet convidou-a a posar no seu estúdio.

Fillide Melandroni uma “cortigiana escandalosa”.

Fillide Melandroni pintada por Caravaggio[*]

Fillide Melandroni uma “cortigiana escandalosa”. Foi assim que a Diocese de Roma julgou Melandroni por recusar o sacramento. Seria a condenação de menor importância que a cortesã haveria de registar na sua vida. Desacatos e posse de arma proibida[1] constam nos registos das autoridades romanas[2]. Melandroni nasceu em Siena no ano 1581 e morreu em Roma com 37 anos (1618). Em Roma viveu no Ortaccio[3], um bairro de prostituição confinado por dois portões que, por ordem do Papa Pio V, era só aberto em determinadas horas durante o dia. Estavam proibidos o uso e o porte-de-armas neste local e as prostitutas apanhadas fora do Ortaccio eram açoitadas em praça pública. Melandroni envolveu-se com um jovem de família nobre, Ranuccio Tomassoni, que foi seu proxeneta. Esta cortesã que tinha Tomassoni como seu amante, também foi modelo do temperamental e irrascível Caravaggio. Em 1594, Caravaggio aventurou-se numa carreira de pintor independente[4] e pinta Os Trapaceiros chamando a atenção do Cardeal del Monte que o adquiriu ao comerciante de arte, Costantino. Foi um começo auspicioso. Com o auxílio de Prospero Orsi, um consagrado pintor maneirista, foram-lhe abertas as portas dos diversos mecenas e coleccionadores, do mundo da arte em Roma, como o banqueiro Vincenzo Giustiniani. Tudo se conjugava para uma vida sucesso. Apareceram novas encomendas, mas o pintor não suportava a mediocridade alheia criticando a originalidade da arte que era concebida nessa altura. A vontade de propor novas ideias estéticas era tão grande, quanto o de denegrir a pintura dos seus congéneres pintores. Ele esteve envolto em várias polémicas e insultos, nomeadamente com o pintor Giovanni Baglione, fazendo distribuir por Roma versos cáusticos caluniando a figura do pintor e da sua mulher (em tribunal negou a sua autoria, mas em vão). Foi condenado por difamação. Em resposta Baglione pinta um quadro, Amor sagrado versus Amor profano, 1602, mostrando-nos um Anjo (o amor vitorioso) afastando Cupido (o amor profano) do demónio, retratado com rosto de Caravaggio que, segundo Andrew Graham-Dixon, “poderá ser a acusação (um insulto) visual da homossexualidade de Caravaggio[5]”. Mais um vitupério, mais um afago no ego do artista Baglione? Caravaggio não primou na sua vida por uma conduta de cidadania exemplar, mas a sua genialidade reconhecida acompanhou a vida pungente do artista. Poderíamos chamar uma arte autobiográfica. Foi várias vezes condenado e preso fazendo constar no seu processo judicial o seu insulto distintivo: “frito-te os tomates em azeite”... frase proferida numa taberna quando o empregado interpolado por Caravaggio se recusou a esclarecer se as alcachofras estavam fritas em azeite ou em manteiga. Não faria sentido repetir tal impropério se não sublinhássemos o local vivenciado. O mesmo local, a taberna, que serve de cenário a um tema bíblico, Invocação de São Mateus[6], 1599. A arte de Caravaggio tem esta capacidade de nos convocar, não só como espectador, mas de nos fazer participar no momento bíblico e histórico. É uma arte que habita os mesmos espaços comuns. É também este o lugar, da vida dissoluta e difícil, que Melandroni partilha e se cruza com o “realismo caravagiano”: é uma escolha estética que o pintor transporta para a tela recorrendo aos modelos retirados do quotidiano. Caravaggio sentia-se um deles e era para eles, os filhos de Deus, que são aqueles que melhor podiam enobrecer as suas personagens bíblicas: os pobres descalços, de unhas encardidas, de pele escura e enrugada, de tez queimada e de vestes descuidadas. Era aqui no seio do povo que Caravaggio recrutava as personagens que melhor ilustravam – segundo o artista – a mensagem de Cristo: “é mais difícil um rico entrar no Reino de Deus do que um camelo passar pelo buraco de uma agulha” (Mateus, 19:23-26). Os traços e as marcas da indigência, a rudeza da vida, os rostos da pobreza são revelados nos seus quadros através de uma técnica pictórica de alto-contraste (claro/escuro) conferindo-lhes a atenção devida do leitor. Afastando-se do idealismo clássico maneirista o artista concentra-se nas pessoas que o rodeiam. O realismo pictórico de Caravaggio abandona a perfeição renascentista do sfumato e de outras técnicas “lambidas” para conferir às suas obras, a matéria, a rugosidade, o vigor da sua arte. Tal e qual, a força que advém da pincelada rude e expressiva, Caravaggio legitima a sua pintura através da protérvia realidade que nos incomoda. Constatamos esta repulsa no quadro A Morte de Maria (1602-6) destinada à igreja das Carmelitas[7] e que o clero considerou desprovida de santidade e ofensiva para a igreja católica, recusando a obra. Foram estas as críticas mais veementes ouvidas para justificar a rejeição deste trabalho. Porém, o que mais escandalizava não era a Virgem Maria ser retratada com demasiada simplicidade, nem a justificação teológica de que a Maria não morreu, mas sim, ascendeu ao céu num sono profundo. O que mais indignou, aos encomendadores e à igreja, foi o de reconhecerem em Maria outra identidade: a de Melandroni coberta com um vestido vermelho decotado. O realismo de Caravaggio foi longe de mais. Apresenta-nos uma verdade que não nos permite escapulir do mundo terreno. Paradoxalmente, não encontramos nada de tenebroso[8] na pintura de Caravaggio. Descobrimos uma realidade crua de vidas esquecidas. De existências que teimamos em apagar. E quase toda a pintura de Caravaggio, realizada em Roma, está directa, ou indirectamente, ligada ao mundo de Fillide Melandroni. Não se conhece nenhuma ligação sentimental entre Caravaggio e Melandroni além da amizade profissional. Todavia, a cortesã serviu de modelo (reconhecidos) em quatro quadros: Marta e Maria Madalena, 1598, Santa Catarina de Alexandria, 1598-9, Judith e Holofernes, 1602-4 e a Morte de Maria, 1602-6. A disputa da mesma mulher, dívidas[9], insultos recíprocos, serviram de “pomo de discórdia” entre Caravaggio e Tomassoni. Um “jogo de ténis” agendado, foi palco [actual Piazza di Firenza] e pretexto para o último confronto, num duelo que terminou em ferimentos graves em Caravaggio e a morte[10] de Tomassoni. O pintor, ferido, calcorreia as ruas em direcção à Piazza Navona refugiando-se no palácio do Cardeal del Monte (actual Palácio Madama) que lhe deu guarida. Depois escondeu-se nas propriedades da família Colonna[11]. Durante este período Caravaggio pinta dois quadros (Êxtase de Maria Madalena[12], 1606, e A Última Ceia de Emaús[13], 1606). Perseguido pela justiça (condenado à morte por decapitação, pelo Papa) leva-o a fugir para Nápoles, Malta e Sicília. A sentença levá-lo-á a penitenciar-se realizando vários quadros com decapitações bíblicas nas quais ele personifica a figura do mártire. Um auto-retrato degolado, um último e desesperado pedido de perdão. No regresso a Roma morrerá (15 de Agosto de 1610) doente no porto de Ercole.

Em 1612 Melandroni foi forçada a deixar Roma pela família do poeta veneziano Strozzi, que era seu atual protector e amante. Dois anos depois regressaria a Roma na mesma altura em que deixa em testamento o seu retrato[14] a Giulio Strozzi; segurando um ramo de flores de jasmim, símbolo do amor erótico[15]. Melandroni morreu em 1618, aos trinta e sete anos. A Igreja recusou-se a dar-lhe um enterro cristão.

 

 Texto, 1999-2023 © Luís Carvalho Barreira



[*] Quadro destruído pelo fogo no Kaiser-Friedrich-MuseumBerlinin 1945

[1] Varriano, John. Caravaggio: The Art of Realism. Penn State Press, 2010. Pág. 90.

 “Em 11 de fevereiro de 1599, houve a denúncia de uma festa barulhenta na casa de Melandroni e que os homens presentes estavam armados. Como o porte de armas era proibido no Ortaccio, as autoridades foram até a casa. No momento da chegada, havia apenas Melandroni e três homens presentes, um dos quais era Tomassoni, que usava uma espada. Melandroni e Tomassoni foram presos.”

[2] Robb, Peter. M: The Man Who Became Caravaggio. Macmillan. 2001. Pág. 90

[3] Este local situava-se a sul do actual museu “ara pacis”, entre o Tibre, a Via di Ripetta, a Piazza Monte d'Oro e a Piazza degli Schiavoni.

[4] Frequentou o atelier de Giuseppe Cesari d’Arpino um consagrado pintor.

[5] Andrew Graham-Dixon, Caravaggio: A life sacred and profane, Penguin, 2011. Pág. 4

[6] Este quadro encontra-se na capela Contarelli da igreja São Luís dos Franceses, Roma.

[7] Obra encomendada por Laerzio Alberti Cherubini, advogado do Papa, para a sua capela na igreja das Carmelitas de Santa Maria della Scalaem, em Roma. A Morte de Maria, 1602, de Caravaggio, encontra-se no Museu do Louvre.

[8] Tenebrismo: [tenebroso, em volto em trevas, muito escuro, sombrio, misterioso] foi a designação que os românticos encontraram para caracterizar a pintura de Caravaggio.

[9] Ibidem, pág. 342

[10] A morte de Tomassoni ocorreu a 28 de Maio de 1606. In Mancini, Baglione & Bellori 2019, p. 56.

[11] Ibidem, pág. 342

[12] Colecção privada. Pertence a um colecionador particular de Roma e que geralmente é chamada de cópia "Klain”.

[13] Pinacoteca de BreraMilão.

[14] Robb 2001, p. 494. Retrato realizado por Caravaggio a pedido do poeta Giulio Strozzi.

[15] Segundo John Gash as flores de jasmim são o símbolo do amor erótico.


BIBLIOGRAFIA

·        Andrew Graham-Dixon, Caravaggio: A life sacred and profane, Penguin, 2011

·        Baglione, Giovanni (1642). Le Vite De' Pittori, Scultori Et Architetti (em italiano). Rome: Nella stamperia d'Andrea Fei. p. 138

·        Domínguez, Javier Bacariza; Fernández, Luis Nieto; Ledesma, Andrés Sánchez; Thyssen-Bornemisza, Museo (2008). Caravaggism and classicism in Italian painting at the Thyssen- Bornemisza Museum: a technical and historical study. Rayxart Investigación. 

·        Erhardt, Michelle; Morris, Amy (2012). Mary Magdalene, Iconographic Studies from the Middle Ages to the Baroque. BRILL. 

·        Graham-Dixon, Andrew (2011). Caravaggio: A Life Sacred and Profane. Penguin Books Limited. 

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·        Mancini, Giulio; Baglione, Giovanni; Bellori, Giovanni Pietro (2019). Lives of Caravaggio. Getty Publications. 

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·        Pullan, Brian (2016). Tolerance, regulation and rescue: Dishonoured women and abandoned children in Italy, 1300–1800. Manchester University Press. 

·        Robb, Peter (2001). M: The Man Who Became Caravaggio. Macmillan. 

·        Spike, John T.; Caravaggio, Michelangelo Merisi da (2010). Caravaggio: Catalogue of Paintings. Abbeville Press. 

·        Varriano, John (2010). Caravaggio: The Art of Realism. Penn State Press. 

Jeanne Duval - négresse fatale

Edouard Manet, Jeanne Duval: La Maîtresse de Baudelaire, 1862

watercolour,

(17 x 24 cm)

Kunsthalle, Bremen, Germany

Manet tinha 30 anos quando pintou esta horrível e triste aguarela. Uma perna desarticulada que sai de um vestido rodado sem se antever implicitamente a ligação estrutural com o restante corpo, uma mão desproporcionada suspensa no canapé e um rosto melancólico deixa antever a decadência de um corpo que outrora foi símbolo de sensualidade, de beleza, de transgressão e de mistério. Trata-se de um esboço. Um apontamento rápido de alguém que mereceu atenção. Um estudo preparatório para uma pintura a óleo do mesmo autor[1]. O seu nome era Jeanne. Jeanne Duval era uma mulher mestiça, “négresse”, que viveu em Paris. Os seus traços exóticos não passaram desapercebidos ao gosto parisiense e em particular a Charles Baudelaire. Viveu numa Paris que se rebelava contra o “bom gosto” das academias. Numa cidade que pululava de vida e de progresso. Numa comunidade artística que paulatinamente se insurgia contra o conformismo romântico. É nesta nova realidade que a Jeanne Duval se move. Uma mulher de vida dissoluta, bailarina e amante incondicional.

Não sabemos as suas origens (provavelmente vinda do Haiti), nem o seu verdadeiro apelido (Duval, Lemer, Naeltjens, Prévost, Prosper, foram também usados), nem a sua data de nascimento, nem a data da sua morte. Uma identidade mantida em segredo, suportada pelo preconceito racista da sociedade francesa do século XIX e pela vida arrebatada vivida nos extremos. Os seus mais directos delatores haveriam de a acusar de perversões, de ser inculta, ou simplesmente condená-la ao ostracismo. Eis o retrato mais fiel de uma mulher que teima permanecer incógnita e, ao mesmo tempo, nos fascina.  Courbet no quadro Atelier do Pintor[2], 1855, retratou-a junto do seu amante. Porém, descreve-a como uma “negra ao espelho”, que se encontra no lado direito por cima de Baudelaire a ler e como forma de justificar o seu acto apaga-a do escol de amigos do pintor. É um fantasma na tela do pintor, é um borrão. Provavelmente terá sido uma maneira eufemística de justificar o estigma racista!? Ou foi para evitar algum escândalo? Espantem-se! O próprio Courbet, autor do quadro “L’Origine du monde[3] - A Origem do Mundo” (1866), a censurar a figura incómoda. Não me parece verosímil. Jeanne dá-se a conhecer através das camadas de tinta sobrepostas que teimam a ocultá-la. Jeanne não é uma figura retratável, ou passível de apresentação pública (talvez porque Courbet tenha apresentado este quadro a um Júri para a Feira Mundial de Paris, 1855, e não quisesse ferir o “bom gosto” dos jurados[4]). Não há margens para dúvidas de que a figura, quase impercetível a assombrar a pintura, é a Jeanne Duval. Encontramo-la no preconceito que a tentou rasurar. Adivinhamo-la na misteriosa história de um amor tempestuosa mantida com Charles Baudelaire. A verdadeira Jeanne Duval é aquela que corre como se fosse um fluido na pena do “poeta maldito”. Sabemo-lo nas imagens poéticas vertidas em suor e ardor romântico em “Flores do Mal”.

Gustave Courbet, Atelier do Pintor, 1855. [361X598 cm] Museu D’Orsay

Baudelaire depois de ter recebido uma avultada herança acomodou Jeanne (a sua “vénus negra” conforme Baudelaire gostava de chamar) num apartamento perto de si, na Île de la Cité. O poeta não lidou bem com a gestão da fortuna recebida e um ano passado a vida de desafogo se tinha esvaído. Porém, Jeanne Duval não era simplesmente a sua amante, era a fonte, uma carniça[1], vivida e testemunhada pelo poeta:

...

As pernas para o ar, como uma mulher lasciva,

Entre letais transpirações,

Abria de maneira lânguida e ostensiva

Seu ventre a estuar de exalações.

 

...

“negra ao espelho”

A amante que o poeta mais amou era símbolo da beleza perigosa. Jeanne era o mistério de uma mulata, a paixão, a transgressão, o corpo poiético para Baudelaire. Ela era a “amante das amantes” dedicando-lhe vários poemas (Le Balcon, Parfum exotique, La chevalure, Sed non satiata, Le sepent qui danse e Une charogne). Tendo sido considerada uma literatura obscena[2] pelo promotor Ernest Pinard que condenou o autor e o seu editor, justificando “insultar a moralidade pública e religiosa e a boa moral”. Se a condenação abalou o frágil corpo do poeta, a “négresse” transformou-se em ópio para a sua escrita poética. Os amantes entregaram-se a uma vida de excessos, álcool e drogas. Abatido pelo julgamento, mas não pela paixão, Baudelaire procurava a essência dos seus próprios limites criativos. Haveriam de partilhar também a doença degenerativa (sífilis) que lhes foi fatal. O “poeta maldito” morreu sem que não deixasse de mencionar o seu tormento: “quis extrair a quinta essência de tudo, [e a “négresse”] deu-me a sua lama e eu transformei-a em ouro”. A mulher que inspirou alguns dos mais belos poemas deste período [realismo oitocentista] definhou passados alguns anos. Morreu sem deixar o seu testemunho. O seu rasgo indelével e tumultuoso com o poeta emergiu em “As Flores do Mal”, onde Baudelaire anotou: “Neste livro atroz, pus todo o meu pensamento, todo o meu coração, toda a minha religião (travestida), todo o meu ódio”.

Deixemo-nos embriagar pelo génio das Flores do Mal, que tanto perturbou a sociedade parisiense, e acantonemo-nos na assombrada aparição. Jeanne é um fantasma na nossa consciência colectiva: o racismo.

 

Texto, 2023 © Luís Carvalho Barreira


Jeanne Duval (Lemer, Naeltjens, Prévost, Prosper)

Fotografada por Félix Nadar

Uma Carniça [As flores do mal, Charles Baudelaire]

 

Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos

Numa bela manhã radiante:
Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos,

Uma carniça repugnante.

 

As pernas para cima, qual mulher lasciva,

A transpirar miasmas e humores,
Eis que as abria desleixada e repulsiva,
O ventre prenhe de livores.

 

Ardia o sol naquela pútrida torpeza,

Como a cozê-la em rubra pira
E para o cêntuplo volver à Natureza

Tudo o que ali ela reunira.

 

E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça

Como uma flor a se entreabrir.
O fedor era tal que sobre a relva escassa

Chegaste quase a sucumbir.

 

Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço,

Dali saiam negros bandos
De larvas, a escorrer como um líquido grosso

Por entre esses trapos nefandos.

 

E tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga,

Que esguichava a borbulhar,
Como se o corpo, a estremecer de forma vaga,

Vivesse a se multiplicar.

 

E esse mundo emitia uma bulha esquisita,

Como vento ou água corrente,
Ou grãos que em rítmica cadência alguém agita

E à joeira deixa novamente.

 

As formas fluíam como um sonho além da vista,

Um frouxo esboço em agonia,
Sobre a tela esquecida, e que conclui o artista

Apenas de memória um dia.

 

Por trás das rochas, irrequieta, uma cadela

Em nós fixava o olho zangado,

Aguardando o momento de reaver àquela

Carniça abjeta o seu bocado.

 

– Pois há de ser como essa coisa apodrecida,

Essa medonha corrupção,
Estrela de meus olhos, sol da minha vida,

Tu, meu anjo e minha paixão!

 

Sim! Tal serás um dia, ó deusa da beleza,

Após a bênção derradeira,
Quando, sob a erva e as florações da natureza,

Tornares afinal à poeira.

 

Então, querida, dize à carne que se arruína,
Ao verme que te beija o rosto,
Que eu preservarei a forma e a substância divina

De meu amor já decomposto!



[1] Título do poema: Baudelaire, Charles, As Flores do Mal, Editora Relógio D’Água, 2003. Tradução: Maria Gabriela Llansol

[2] Em 1857, seis poemas considerados particularmente infames foram retirados da venda e só em 1949 essas “peças condenadas” foram reintegradas em Fleurs du mal.

[1] Edouard Manet, La Maîtresse de Baudelaire, 1862, oil on canvas, 90 x 113 cm, Szépmüvészeti Müzeum, Budapest, Hungary

[2] A obra tem como título “O Atelier do Pintor”, seguido de um subtítulo muito sugestivo: “Alegoria Real que define uma fase de sete anos da minha vida artística e moral”. “Em Paris, no Museu d"Orsay, encontra-se uma obra monumental de Gustave Courbet, uma alegoria real, pintada em 1855, intitulada O Ateliê do Pintor. A pintura representa o artista diante da tela, rodeado dos seus modelos.” in site RTP

“No primeiro grupo, os da direita, podemos reconhecer o perfil barbudo do colecionador de arte Alfred Bruyas, e atrás dele, de frente para nós, o filósofo Proudhon. O crítico Champfleury está sentado em um banquinho, enquanto Baudelaire está absorto num livro. O casal em primeiro plano personifica os amantes da arte e, perto da janela, dois amantes representam o amor livre”. in site: Musée d’Orsay

[3] Gustave Courbet, L’Origine du monde, 1866. (46X55 cm) Musée d’Orsay. Assunto: vulva, mulher.

[4] Esta obra foi recusada pelo júri da Feira Mundial de Paris de 1855. Courbet, com a ajuda de Alfred Bruyas, abriu sua própria exposição (O Pavilhão do Realismo) perto da exposição oficial; este foi o precursor dos vários Salon des Refusés

Giulia Farnese

Rafael Sanzio

Retrato de uma Dama com Unicórnio

1505-6

Período: Renascimento

Galleria Borghese, Roma.

Quem é esta misteriosa dama com um precioso vestido do início do século XVI - la gamurra - com mangas largas de veludo vermelho e corpete de seda aguada? Que animal é este – unicórnio – e qual é o seu significado? Será esta a “La Bella Giulia” pintada por Rafael, a amante do Papa Alexandre VI?

O que o Retrato de uma Dama com Unicórnio esconde, a verdadeira identidade da personagem retratada é revelada à luz da história da vida privada.

Rafael empresta à pessoa retratada um ambiente renascentista quanto à sua organização espacial: duas colunas clássicas erguem-se lateralmente e com as bases assentes num muro, uma espécie de loggia, definindo através de linhas implícitas convergentes num ponto de fuga (perspectiva linear) orientando o olhar para o rosto da jovem. A parte superior do quadro é marcada pela presença de uma paisagem ao fundo, em tons azuis em gradação até aos cinzas, em pinceladas difusas, intensificando a perspectiva aérea concentrando o nosso olhar no retrato anunciado. É um retrato a ¾ de olhar fixo no observador (artifício estudado para que o olhar nos acompanhe em qualquer ponto que o observador se encontre) assente num triângulo conferindo estabilidade compositiva à semelhança do retrato de Monalisa de Leonardo da Vinci.

Recorrendo a uma paisagem para cenário do retrato, Rafael evidencia não só o domínio da perspectiva, mas também reflecte as correntes neoplatónicas de Marsílio Ficino que advogava que “a alma pode ser chamada o centro da natureza, a intermediária de todas as coisas, a corrente do mundo, a essência de tudo, o nó e a união do mundo”. Que se pode traduzir na arte renascentista entre a Ideia e a Matéria, entre o divino e o terreno, entre a fé e os sentidos. Os artistas renascentistas empenharam-se em encontrar o rácio geométrico, a harmonia formal e cromática, a sugestão da terceira dimensão e a importância dos elementos iconográficos. Para os pintores renascentistas foi uma obsessão a procura desta dimensão: a racionalidade na pintura:  segundo Leonardo da Vinci “a Pintura é uma coisa mental”. Tecnicamente, neste quadro de Rafael, traduz-se por uma pincelada firme e precisa, uma gradação (sfumato) aplicado com mestria e de cores vibrantes (onion) captando a nossa atenção. A tez branca do rosto, em contraste com as bochechas rosadas, um farto e bem afagado cabelo, confere doçura à jovem retratada. Iconograficamente, a jovem ostenta um pingente (rubi e safira) caído por uma pérola – scaramazza - símbolo do amor espiritual, cujas referências simbólicas são alusivas às virtudes conjugais e à candura virginal. E do mesmo modo se pode interpretar o unicórnio símbolo de castidade e pureza feminina (usado como emblemas por várias princesas e nobres, desde a Idade Média). O próprio colar de ouro, evidenciado pelo nó, é uma clara referência ao vínculo matrimonial.

Mas afinal, quem era esta jovem mulher? Ou será a filha de Giulia Farnese Orsini, Laura Orsini?


O que sabemos é que este quadro já foi uma Santa (Catarina) e aquando de um restauro realizado em meados do século XX foi revelado um cachorrinho, alterado, ainda por Rafael, para um unicórnio no aconchego do regaço. O manto que cobria a Santa Catarina foi retirado deixando a descoberto os ombros da enigmática jovem.

Será a Giulia Farnese? A mulher oriunda de Canino, província de Viterbo, que veio para Roma, em 1489, para casar com Orsino Orsini (uma das famílias com maior poder em Roma); ele era um homem “cego de um olho e de caráter débil e covarde”. Um perfil nada sedutor.

Giulia Farnese manteve uma relação extraconjugal com o cardeal Rodrigo Bórgia, mantendo-a mesmo quando foi nomeado Papa Alexandre VI. Esta relação de adultério não era alheia à família Orsini que discretamente mantivera silêncio, ou até o apoio por parte da sua sogra, Adriana de Milá, mãe de Orsino Orsini, defendendo os seus interesses e o da família Orsini. No mesmo ano, 1492, em que Rodrigo Bórgia foi nomeado Papa Alexandre VI nasceu Laura Orsini que, apesar da mãe (Giulia Farnese) afirmar que a paternidade pertencer ao Papa, este nunca a reconheceu, ao contrário da anterior amante, Vanozza dei Catanei, que teve quatro filhos (César, João, Lucrécia e Godofredo) todos eles perfilhados pelo pai, Papa Alexandre VI, Bórgia.

As disputas e alianças verificadas entre as principais famílias fizeram da Giulia Farnese a figura central dos conflitos, das paixões, dos dramas e da luxúria vivida. O nepotismo do Estado Papal no final do século XV foi palco de grande disputa política, religiosa entre as principais famílias: os Bórgias, os Orsinis, os Farneses e os della Rovere.

La Bella Giulia pelo “ardor particular” e pela ambição demonstrada ganhava cada vez maior protagonismo e influência junto do Papa Alexandre VI. Dessa maneira persuasiva e sedutora fez com que seu irmão Alessandro Farnese fosse nomeado cardeal, acabando por ser Papa (Paulo III) mais tarde, em 1534. Contudo, a família della Rovere desavinda com os Bórgias granjeou novos apoios políticos (Rei de França) e financeiros (como o de Jakob Fugger, o grande impulsionador da nova Basílica de São Pedro) conseguindo que Giuliano della Rovere fosse eleito Papa Júlio II em 1503[1].

Ao novo Papa não foi alheio ao ardor e à beleza, em particular, de Giulia tendo sugerido aos mais ilustres artistas (Rafael, Michelangelo, Pinturicchio)[2] para que Giulia servisse de modelo em várias pinturas religiosas.

Vários relatos chegaram até nós relativos à beleza de Giulia incluindo a do próprio filho do Papa Alexandre VI, César Bórgia, descrevendo-a como tendo “cor escura, olhos negros, rosto redondo e um ardor particular”. Esta descrição feita por César Bórgia não confere com o quadro em análise, pintado por Rafael em 1505 (ainda antes de ter vindo para Roma a convite do Papa Júlio II) e nesta altura Giulia Farnese, casada, tinha 31 anos e com uma filha de 13 anos.

A identidade da jovem tem sido alvo de grande debate e especulação. Há quem tenha dito que se pode tratar da irmã de Rafael, Elisabetta, nascida em 1491. Parece muito mais plausível que na verdade seja a filha de Giulia Farnese, Laura Orsini[3], que na época se casou com Niccolo della Rovere[4]. Um casamento organizado pelo Papa Júlio II della Rovere, tio do noivo e sucessor e inimigo de Alexandre VI, que desejava aliar-se às famílias Farnese e Orsini. Assim, a obra seria então encomendada a Rafael para o casamento, o que condiz com o facto de a menina originalmente segurar um cachorrinho, símbolo de fidelidade prontamente alterado para um unicórnio com duplo significado: símbolo de castidade e pureza feminina e insígnia da família Farnese.


Texto: 1990-2023 © Luís Carvalho Barreira

 

 

 

Notas:

Em 2 de abril de 1499, no Palazzo Farnese, Laura Orsini (com 7 anos), foi prometida em casamento a Federico Farnese, filho de Raimondo Farnese e sobrinho de Pier Paolo Farnese. O noivado foi posteriormente dissolvido.





[1] Após a morte do Papa Alexandre VI (envenenado?) foi eleito o Cardeal Alpedrinha, Jorge da Costa, que recusou o cargo, tendo sido eleito o Papa Pio III que esteve como sumo pontífice durante 26 dias.

[2] David Willey. «Fresco fragment revives Papal scandal»

[3] Ferdinand Gregorovius (1874). Lucrezia Borgia: secondo documenti e carteggi del tempo (in Italian). unknown library. Le Monnier.

[4] "FARNESE, Giulia in "Dizionario Biografico"". www.treccani.it 

 

Sandro Botticelli, Nascimento de Vénus, 1483.

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Galeria Uffizi, Florença

Será uma obra menor (Kitsch) ou uma obra inovadora para a época? Como se enquadra esta pintura de Botticelli no racionalismo artístico do Renascimento? 

Façamos uma breve abordagem a este quadro à luz das teorias neoplatónicas, de Marcilio Ficino, e da sua inegável influência na corte dos Médicis traduzida numa nova linguagem formal e plástica: o simbolismo renascentista. O Renascimento assente no humanismo fez com que as histórias mitológicas e o paganismo fossem interpretadas à luz de uma nova mensagem divina: o cristianismo. Ou seja, entre tensão da Ideia e de Verdade fundida no conceito de Beleza. O conceito de Belo funde-se com o bem moral por conseguinte “não é a Beleza das partes, mas a Beleza supra-sensível que se contempla”, porque a “Beleza divina difunde-se não só na criatura humana, mas também na natureza[1]”. Botticelli, segundo Umberto Eco[2], era espiritualmente próximo de Savonarola[3] para quem a Beleza era mais resplandecente quanto mais próxima de Deus. O Belo na nudez passou a ser associado a valores morais passíveis de novas interpretações fazendo com que o manto diáfano da moral vigente (cristã) pudesse apagar a lubricidade que algumas figuras pudessem vincular. Assim, o recurso à mitologia, à metáfora, ao simbolismo, serviu muitas das vezes para sublimar a paixão voluptuosa do artista e ou do encomendador[4]. É precisamente com este espírito analítico e crítico que a leitura de o “Nascimento de Vénus” deve ser lida; ela nasce do neoplatonismo ficiano. Dispensemo-nos de escalpelizar se este quadro, dentro das teses especulativas, quanto à identidade familiar das figuras representadas. Pouco importa se a Vénus brotou do ímpeto artístico, ou se teve como modelo a “Bella Simonetta” por quem o artista (e não só) nutria uma grande paixão. O que sabemos é que Simonetta Vespúcio serviu de musa inspiradora e que esta obra se destinava a deleite privado. E que a deusa do amor e da beleza é a figura mitológica que melhor a podia personificar escapando assim à “Fogueira das Vaidades[5]”. O recurso ao simbolismo é uma espécie de máscara fruto de um mero desejo sublimado no objecto de contemplação. Esta dualidade de leituras enquadrar-se dentro da linguagem plástica da época constituindo uma estética particular dentro Renascimento. 

Se no Renascimento a procura do realismo e do naturalismo, nomeadamente na pintura, pautava-se por uma pesquisa incessante vertida nos mais diversos Tratados, quer a nível formal, quer a nível técnico: a conquista do espaço cénico através da procura da perspectiva (linear e aérea); a introdução de uma geometria implícita procurando o equilíbrio formal; o uso e o domínio do claro-escuro (sfumato, cangiante, unione e chiaroscuro) dando ênfase à modelação mais realista das figuras; a evocação do Naturalismo com grande rigor e detalhe; e, sobretudo, o Nu (privilegiando o cânone clássico), com algum rigor anatómico; a obra em apreço parece fugir a todos estes cânones renascentistas.

...

Regressemos à análise da pintura, Nascimento de Vénus de Botticelli. Este quadro foi a primeira tela de grandes dimensões realizado em Florença. Pintado a têmpera sobre tela e mede 172,5 cm de altura por 278,5 cm de largura. 

Tecnicamente a utilização de velaturas muito finas cria uma atmosfera ilusória e ao mesmo tempo fantasiosa. A sobreposição de pinceladas acompanhada do cruzamento de traços permitem uma correcta gradação de tonalidades: as cores da têmpera são brilhantes e translúcidas o que suspeitamos que o pigmento foi diluído num aglutinante (ovo), ou por um verniz resinoso. Ao utilizar velaturas muito finas deixa o fundo visível produzindo um efeito transparente, perceptível no céu, nos tons de pele e na concha. Botticelli inspirado, provavelmente, na Vénus de Médici (escultura), apresenta um desenho assente em traços de cariz acentuado, como, por exemplo, no nivelamento dos ombros descaídos que sustentam um longo pescoço. Os brilhos e os matizes alcançados dão-lhe uma aparência irreal, de aparência escultórica.  Não obstante, todos estes detalhes formais e estéticos, Vénus transporta as forças irreprimíveis do erotismo, não na sua nudez, mas sim nos longos cabelos que discretamente cobrem qualquer desejo apaixonado entre de dois amantes. Este apelo enamorado é reforçado pela presença de Clóris raptada por Zéfiro concupiscentemente entrelaçados. É o amor em forma física, é o desejo e o prazer dos sentidos. O vigoroso sopro de Zéfiro que empurra Vénus para terra firme não é suficiente para arrastar as flores sagradas que caem dispersas suavemente num fundo azul recortado por pequenas linhas brancas ritmadas sugerindo a espuma de ondas brandas. O carácter simbólico da enorme concha de vieira que sustenta o nascimento de Vénus[6] (já adulta), significa a fertilidade, o amor, a harmonia e a beleza ideal. 

O mar e o céu são recortados pela linha do horizonte bem delineada não criando uma ilusão de profundidade mas prontamente colmatado por um terreno sinuoso terminado na linha do horizonte (sugerindo timidamente profundidade: perspectiva). No lado oposto, uma das Graças (Tália – a que faz brotar flores), pairando em terra pouco firme, acolhe Vénus arremessando um manto de cetim vermelho decorado com flores vermelhas e brancas. Como símbolos do amor, lealdade e modéstia o chão está cheio de violetas e a ninfa transporta à volta do pescoço uma grinalda de murta. Num cenário de bosque sombrio cujas folhas e troncos das árvores parecem bordados a ouro ganham detalhado destaque por se tratarem de laranjeiras a florescer, correspondendo ao jardim sagrado das Hespérides.

A ênfase dado à iconografia acentuado pela história mitológica leva, sem dúvida, Botticelli a transformar o Nascimento de Vénus - história mitológica da Deusa mais sedutora e de maior beleza - filha do esperma de Urano (o Céu) derramado no mar, depois da castração de Urano pelo seu filho Cronos - numa obra alegórica, de um lirismo cenográfico, transformando Vénus numa espécie de ícone erótico. 

Todo o cenário é irreal, escandalosamente fantasioso.

 

 

1999 © Luís Carvalho Barreira

 


[1] Segundo Umberto Eco, in História da Beleza, Difel, 2004. Pág. 184

[2] Ibidem, pág. 188

[3] Fra Girolamo Savonarola foi um padre dominicano designado para trabalhar em Florença em 1490 graças, em grande parte, ao pedido de Lorenzo di Médicis - uma ironia, uma vez que Savonarola viria a tornar-se um dos maiores inimigos da família Médicis poucos anos depois e ajudaria a concretizar seu declínio em 1494. Savonarola fez campanha contra o que considerava ser os excessos artísticos e sociais da Itália renascentista, pregando com grande vigor contra qualquer tipo de luxo. in wikipedia

[4] Referenciada como encomendada por Lorenzo di Pierfrancesco de Médici para a Villa Medicea di Castello a muito probável que, segundo Germán Arciniegas, a obra tenha sido uma homenagem ao amor de Juliano de Médici (que morreu em 1478, na Conspiração dos Pazzi) por Simonetta Vespúcio. in Arciniegas, Germán. El mundo de la bella Simonetta.Planeta, Bogotá:1990 

Alguns historiadores sugerem que a Vénus pintada para Pierfrancesco, e mencionada por Giorgio Vasari, teria sido outra que não a obra exposta em Florença e estaria perdida até o momento. in Smith, Webster: On the Original Location of the Primavera.

[5] A “Fogueira das Vaidades” refere-se à fogueira de 7 de fevereiro de 1497, quando defensores do padre dominicano Girolamo Savonarola angariaram e publicamente queimaram milhares de objetos tais como cosméticos, obras de arte e livros em Florença.

O foco dessa destruição estava explicitamente em objetos que pudessem tentar uma pessoa a pecar, o que incluía itens de vaidade como espelhos, cosméticos, vestes finas, baralhos e até instrumentos musicais. Outros alvos incluíam livros tidos como imorais, tais como as obras de Boccaccio, e manuscritos de música secular, além de obras de arte como pinturas e esculturas. in wikipedia

[6] Segundo Cesare Ripa, «Vénus representa-se jovem, nua e bela, com uma coroa de rosas, levando na sua mão uma concha marinha. Representa-se nua, por despertar o apetite dos abraços lascivos; ou também porque quem anda em casas de prazeres venéreos, muitas vezes acaba desnudado e privado de todo bem, por quanto as riquezas são sempre devoradas por mulheres lascivas; debilitando-se por conseguinte o corpo, e manchando a alma com tanta indecorosidade, que nada de belo se poderá encontrar em tal acção». 

 


2024 © Luís Carvalho Barreira

Galleria Uffizi, Florença

Fotografia

Diego Velázquez, Vénus ao espelho, 1647-51

Mary Richardson

Mary Richardson

O único nu conhecido de Diego Velázquez: Vénus ao Espelho, 1647-51

Em 10 de Março de 1914 a pintura de Diego Velázquez, Vénus ao espelho (Toilet of Venus ou Rokeby Venus), foi atacada por Mary Richardson, desferindo-lhe sete golpes com um cutelo que quase destruiu, irremediavelmente, a pintura. Mary Richardson, uma mulher sufragista, haveria de justificar: “Tentei destruir a pintura da mais bela mulher na história da mitologia como um protesto contra o governo por destruir a Sra. Pankhurst, que é a pessoa mais formosa da história moderna”[1]. (Referia-se, supostamente, à sua companheira Emmeline Pankhurst que tinha sido presa no dia anterior ao acto perpetrado). 

Diego Velázquez, Vénus ao espelho, 1647-51Dimensões: 142x177 cmNational Gallery, Londres

Diego Velázquez, Vénus ao espelho, 1647-51

Dimensões: 142x177 cm

National Gallery, Londres

Durante o século XVII, com endurecimento da Igreja Católica na formatação de uma moral saída da Contra-Reforma, a pintura do nu feminino fora desencorajada e a sua representação foi conotada com o pecado capital da Luxúria. A Inquisição espanhola através do Tribunal do Santo Ofício haveria de perseguir todas as imagens pagãs, assim como elencar, no Index Librorum Prohibitorum,todos os livros proibidos. A fogueira era o destino encontrado para as obras ou para os autores. Quanto muito algumas pinturas toleradas pelo carácter moralista e educativo (ver: Inferno no MNAA). É sabido que no período renascentista a representação clássica do nu foi hábil em transformar histórias mitológicas em prazeres libertinos dos seus promotores e ou dos coleccionadores. Nobres e Príncipes, Reis e Papas, desejosos de fama e glória vão patrocinar as artes fazendo representar-se, dissimuladamente, nas obras; quer pela orientação da encomenda introduzindo-lhes valores simbólicos alusivos ao seu estatuto social ou da sua família, quer mesmo pela própria representação sugerida, muitas das vezes, pelos seus traços fisionómicos das personagens envolvidas. O “Nascimento de Vénus” de Botticelli é uma obra  paradigmática deste nosso ponto de vista: Vénus não aparece neste quadro somente como a deusa do amor e da beleza, é muito mais: é o modelo, a musa, a amante, do artista. Mas é também a paixão doentia do mecenas Juliano de Médicis que  encomendou tal pintura: falamos da “La Bella Simonetta”, Simonetta Vespucci[1], a mulher por quem os homens morrem de amores. Botticelli continuou a utilizar o seu rosto como modelo ideal para as suas pinturas. A Vénus, deusa do amor e da paixão, começa a parecer-se com as suas amadas e amantes resvalando para aquilo que poderíamos chamar de “humanismo sensual”: um novo cânone de beleza. Este erotismo na intimidade, a partir do século XVII, vai emancipar-se e deixar ter cobertura somente em histórias da mitologia clássica passando a ser vivenciado na primeira pessoa. O quadro em apreço, Vénus ao Espelho, de Diego Velázquez não é uma pintura mitológica. É uma mulher – Vénus - que nos fita no espelho seguro por uma criança com umas pequenas asas empunhando alguns laços – Eros - amarrando-nos a uma cumplicidade concupiscente transformando-a em mito. Mito porque não conhecemos a sua identidade e preferimos apelidá-la de Vénus ao espelho de Velázquez. Não desejamos (queremos) saber se foi encomenda do famoso libertino, Marquês de Eliche, retratando uma das suas amantes; ou mesmo se se trata da Olimpia Trunfi amante de Diego Velázquez de quem teve um filho ilegítimo. A história deste quadro é a história da vida privada de colecionadores frequentadores da corte, de uma elite ligada ao poder, que alimentava a saciedade erótica da diplomacia a cobro de histórias mitológicas. Assim, este quadro ornamentou os espaços privados da Casa de Alba; pertenceu à colecção privada de Manuel Godoy juntamente com a Vénus de Urbino de Ticiano e a Maja desnudade Goya; foi levado para a Inglaterra e pendurada em Rokeby Park (de onde provém seu apelido Rokeby Venus) acabando por ser adquirida pela National Gallery, para mais tarde, em 10 de Março de 1914, ser seriamente danificada pela sufragista Mary Richardson. 

Mas o que é que levaria Mary Richardson a cometer tal atitude? Mera luta política na defesa dos direitos das mulheres? Numa entrevista dada ao Sindicato Político e Social de Mulheres, em 1952, acrescentou que “não gostava do jeito como os visitantes masculinos olhavam para ela todo o dia[2]”.

 

Luís Barreira © 2007

 

 

BIBLIOGRAFIA

Lourdes Ortiz, Las Manos de Velázquez, planeta, 2006

Thomas Hoving (ex-director do Metropolitan Museum of Art), Masterpiece, 2015

 


[1]Antes de morrer, Botticelli pediu para ser enterrado aos pés de Simonetta.

[2]ibidem



[1]Prater, Andreas (2002). Venus at her mirror. Velázquez and the art of nude painting. Munique; Nova Iorque: Prestel. 133 páginas.

Agnès Sorel - Virgem de Melun

Etienne Chevalier e Santo Estêvão / Virgem de Melun

Etienne Chevalier e Santo Estêvão / Virgem de Melun

Este quadro (díptico) é um dos mais inquietantes e enigmáticos quadros da pintura europeia: a Virgem de Melun. Realizado em 1450 por Jean Fouquet esta pintura está actualmente no Real Museu de Belas Artes de Antuérpia (Bélgica) e faz parte de um díptico cujo quadro da esquerda se encontra em Berlim (Staatliche Museen). Este díptico de complexa leitura iconológica e plástica merecerá a nossa melhor atenção e análise. E algumas questões poder-se-ão fazer neste momento. Quem são as personagens ali representadas? Estamos presentes de um quadro religioso? Qual o valor iconográfico das imagens? E qual a razão para as diferenças estilísticas e formais verificadas nos dois quadros?

Contextualizemos social e politicamente a pintura no seu tempo: estamos na França no século XV. Há muito tempo que a luta pelo trono francês se disputava entre duas casas reais (a casa Angevina[1], inglesa, e a casa Valois, francesa). Desde 1337 até 1453 que ingleses e franceses se encontravam em conflitos e guerras constantes, envolvendo várias gerações e reinados: esta guerra ficou conhecida pela “Guerra dos Cem Anos”. Com a vitória de Henrique V, rei inglês, sobre Carlos VI, rei francês, deveria por termo às longas hostilidades culminadas com a assinatura do Tratado de Troyes (1420). Não foi assim. Do tratado saiu um reino dividido e uma clara humilhação à coroa francesa. Se pela força das armas Henrique V ocupou o norte de França, incluindo Paris, por força do casamento com a princesa Catarina de Valois, filha do rei francês Carlos VI, Henrique V ficou legitimado a herdar o trono francês. Do tratado saiu ainda a obrigação de Carlos VI deserdar do trono o seu filho, o Delfim, Carlos VII.

Em 1422 morreram os dois reis em contenda, Carlos VI de França e Henrique V de Inglaterra. Como o herdeiro ao trono de Inglaterra, Henrique VI, ainda era um recém-nascido a regência foi entregue ao Duque de Gloucester passando a administrar a Inglaterra, e o Duque de Badford ocupou-se dos destinos de França. Nesse mesmo ano (1422) Carlos VII, o Delfim, assumiu a realeza em Bourges e empreendeu uma longa luta pela restituição do poder. Assim, a França encontrava-se dividida em dois reinos: nos territórios do norte governava o rei inglês, apoiado pelos Borguinhões, e nos territórios do sul reinava o francês Carlos VII, com o apoio dos Armagnacs[2].

Com a França dividida em pequenos feudos e interesses particulares coube a Carlos VII reorganizar o estado, instigando os franceses contra os ingleses e seus aliados, apelando à ideia de unidade e de patriotismo. Deste apelo assistimos, então, no consulado do rei Carlos VII, ao aparecimento de duas figuras históricas femininas que mudaram, de certa maneira, o curso da história: Joana d’Arc  (c. 1412 – 1431) e Agnès Sorel (1422-1450) desempenhando diferentes papéis. Joana d’Arc, pela temerária bravura, foi heroína, tomando partido dos Armagnacs na longa luta contra os Borguinhões e os seus aliados ingleses. Foi receada pelos seus opositores, após a vitória sobre os ingleses em Orleães, conduzindo Carlos VII à cidade de Reims, onde foi coroado rei da França em 17 de julho de 1429. Durante um ataque ao campo de Margny, numa tentativa de libertar Compiègne, Joana acabou por ser presa  (23 de Maio de 1430) pelos Borguinhões. Acusada de heresia e assassinato foi condenada à fogueira em auto de fé, com apenas dezanove anos. Para os partidários de Carlos VII, saídos vencedores desta contenda, encontraram na Joana d’Arc a heroína, a mártir, e rapidamente reconhecida pelo poder político e religioso como Santa[3].

Agnès Sorel cedo se fez notar na corte francesa. De dama de honra de Isabel de Lorena (rainha consorte do reino de Nápoles) passou a aia oficiosa da rainha Maria de Anjou mulher de Carlos VII, o pequeno rei de Bourges, “sem beleza, pouco inteligente e sem fortuna”. A sua juventude e beleza não passaram desapercebidas ao rei francês que a escolheu como amante, preferida. Agnès Sorel foi uma sedutora. Com o seu magnetismo influenciou políticos; com a sua beleza moveu barreiras; e com a sua ousadia espantou a corte. Segundo o cronista e poeta Georges Chastellain (mencionado no livro, 100 Masterpieces in Detail[4]) “a amante do rei era a única a aparecer num torneio montada num garanhão, com reluzentes armaduras prateadas cravejadas de jóias. Na igreja manifestava grande angústia nos seus pecados, mas quando caía em si, ela mantinha a cabeça bem erguida exibindo longos vestidos (com enorme cauda) assim como ousados decotes alguma vez usados por outras princesas”. O Bispo — citamos a mesma fonte — manifestou o seu desagrado ao rei sobre as vestes de Sorel aludindo à quantidade de pano que a não deixava ver o caminho a percorrer e, ao invés, a falta de decoro dos solícitos decotes que expunham os seios e mamilos da sua amante temendo fazer “escola” noutras mulheres. Agnès Sorel, a mulher mais bela do seu tempo, não foi só mais uma amante do rei, mas também teve a capacidade de alterar comportamentos e de influenciar politicamente o destino do reino. A importância de Agnès Sorel na vida do rei Carlos VII fez-se notar em toda a corte e naqueles que a visitavam, tendo sido observada pelo Papa Pio II que registou nas suas memórias: “seja na mesa, na cama ou na câmara do conselho, ela estava sempre ao seu lado[5]”.

Agnès Sorel angariava facilmente amizades em todos sectores da burguesia francesa que viam nela uma oportunidade de ascensão social e de um possível negócio. Ela era também uma mulher hábil no aconselhamento de amigos introduzidos na corte que viam nela um meio de assegurar a benevolência real. O grande mercador internacional e banqueiro do rei, Jacques Cœur, que guardava tesouros no seu palácio de Bourges, foi um amigo muito chegado da “amante real”. O primeiro diamante lapidado conhecido foi oferecido pelo rei à “Dame de Beauté”. Em poucos meses “a mulher mais bela do mundo” obtinha não só a graça real como o domínio de vários feudos: Vernon, Issoudun, Roquecezière, Beauté-sur-Marne oferecendo-lhe ainda a posse de Loches.

A ascensão meteórica de Agnès Sorel foi interrompida aos 28 anos quando estava grávida do quarto filho. Durante a campanha de Jumières onde se encontrava o rei, Agnès Sorel deslocou-se até ao local — à vila de Le Mesnil-sous-Jumièges —, num dia invernoso, para poder estar mais próxima dele. Foi aqui que ela de repente ficou doente e acabou por morrer. Suspeitos de assassinato foram muitos: e desde logo se suspeitou de Jacques Cœur; incluindo o filho do rei, Louis XI, que não aprovava a relação amorosa do pai com a amante. Causas da morte: desconhecidas. Envenenamento por mercúrio são as causas mais prováveis[6]. No entanto, esta teoria conspirativa pode não ter sustentação porque naquela época o uso de mercúrio na cosmética ou na desinfestação de insectos ou vermes era usual.

Apesar de tudo, Agnès Sorel, além de devota, era crente na Virgem Maria. E pressentindo que a vida lhe escapava deixou todos os seus bens à Colegiada de Loches para que fossem rezadas missas na salvação da sua alma. As jóias foram deixadas à família e ao rei. E, acreditamos, que gostaria de ser relembrada como mãe que deu quatro filhos ao rei. Aceitamos que a própria vida de Agnès Sorel se encarregou de escrever o guião para o díptico a Jean Fouquet e que, provavelmente, terá sido a última vontade de Agnès Sorel de se imortalizar. Este quadro é, sobretudo, uma declaração de amor à maternidade, à mãe que deu à luz quatro filhos “Bastardos de França” que o rei Carlos VII haveria de legitimar. Coube a Étienne Chevalier, conselheiro da corte do rei Carlos VII, fiel testamentário, de encomendar a Jean Fouquet o Díptico para ser disposto na capela funerária de Agnès Sorel na catedral de Melun[7]. Fazendo-se representar no quadro como forma de lealdade e fidelidade ao rei e à amante do rei. Por vontade dela, do rei ou do fiel conselheiro, a “Virgem de Melun” não é mais do que uma metáfora do poder feminino e uma homenagem ao amor de mãe. Muitas perguntas ficarão sem resposta e o mistério da “Virgem de Melun” permanece.

Jean Fouquet, Virgem de Melun, 1450

Jean Fouquet, Virgem de Melun, 1450

A Virgem de Melun não é, seguramente, uma pintura religiosa[8]. Ela esconde a misteriosa história da mulher mais formosa de França[9]: La Belle Agnès Sorel cuja vida esteve envolta em amor, paixão, drama e morte.

O quadro com a “Virgem de Melun” apresenta-se do mesmo modo que as deidades femininas haviam sido representadas ao longo da História. O culto ao divino e à fertilidade assimilado pelas várias civilizações e que no cristianismo, em particular, deu lugar à virgem lactante, à mãe de Cristo, símbolo do amor materno. À semelhança das inúmeras representações de Maria amamentando Cristo, a “Virgem de Melun” pretende sublinhar o amor que está subjacente à maternidade. E é neste sentido que a devemos observar. O que as formas revelam, as sucessivas velaturas do tempo escondem a verdadeira identidade. Será esta a verdadeira Agnès Sorel, a amante do rei Charles VII, que morreu aos 28 anos logo após o nascimento do seu último filho – único rapaz?

Cremos que sim!

O modo irreal da figura central e como é tratada toda a composição faz-nos viajar para um mundo onde a beleza nos parece incorruptível contrastando com um cenário escuro, de querubins vermelhos e azuis, numa espécie de “tabernáculo com dez corti­nas internas de linho fino trançado e de fios de tecidos azul, roxo e vermelho, e nelas mande bordar querubins  (Êxodo 26:1). O tratamento formal e plástico não são uniformes em ambos os quadros: enquanto o primeiro, da esquerda, retratando Étienne Chevalier, cavaleiro conselheiro da corte do rei Carlos VII, com o seu patrono Santo Estêvão à sua ilharga, segue os princípios plásticos do renascimento italiano: como a introdução de elementos arquitectónicos no espaço cénico é orientada segundo as regras da perspectiva; o claro-escuro e a luz são tratados de uma forma homogénea em todo o quadro; as personagens são retratadas com carácter realista; registamos numa pilastra, dois planos distintos em perspectiva, onde está inscrito o nome de Étienne Chevalier (IER ESTIEN).

O segundo quadro (Virgem de Melun) é exaltado o valor iconográfico da imagem em detrimento do realismo. Valores verificáveis na pose “seráfica” da Madonna e na candura do menino; nas cores etéreas da pele contrastando com as berrantes cores dos querubins em plano de fundo; na acentuação do seio desnudado; na falta de estrutura anatómica deixando observador com dúvidas se a Madonna está sentada ou de pé, e o mesmo se aplica para o local onde o menino está apoiado (sentado no regaço? Na coxa da mãe?). A teatralidade assumida neste quadro assenta em valores irrealistas que nos remete para uma leitura do essencial. Agnès Sorel reina! Reina coroada à semelhança do padroeiro Santo Estêvão representada com a coroa de martírio da cristandade. Reina como “O Senhor reina! As nações tremem! O seu trono está sobre os querubins! Abala-se a terra!  (Salmos 99:1).

 

 

 

 

Texto © Luís Barreira, 2010-2018


 


[1] Angevinas (de Anjou) ou Plantagenetas são originários do Condado de Anjou, actualmente parte de França, e chegam ao poder em Inglaterra através do casamento de Godofredo V, Conde de Anjou, fundador da dinastia, com Matilde de Inglaterra, a herdeira de Henrique I. O primeiro rei Plantageneta foi Henrique II, filho de ambos. A dinastia Plantageneta é um ramo da dinastia de Anjou, à qual Godofredo pertencia.

[2] A facção dos Armagnacs, no século XV, constituía um dos dois partidos oponentes que travaram uma guerra civil, na França - paralelamente à Guerra dos Cem Anos. Os adversários dos Armagnacs eram os Borguinhões. Na origem, o conflito envolvia, de um lado, o Duque da BorgonhaJoão sem Medo e, do outro Luís, duque d'Orleães. Desde 1393, quando Charles VI enlouquecera, a França foi governada por um conselho de regência presidido pela rainha Isabel da Baviera.

A guerra civil dos Armagnacs e Borguinhões teve início a 23 de novembro de 1407, quando o Duque d'Orleães foi assassinado, por ordem de João sem Medo. O conflito debilitou enormemente a França, já em luta contra a Inglaterra, na Guerra dos Cem Anos. A guerra entre Armagnacs e Bourguignons só terminará quase trinta anos depois, com a assinatura do Tratado de Arras (1435). João sem Medo também será assassinado, em 1419, pelos Armagnacs. In Wikipedia

[3] Joana d’Arc, 25 anos após sua morte em 1456, foi reabilitada pelo Papa Calisto III, por considerar seu processo inválido, e canonizada em 1920, pelo papa Bento XV.

[4] Rose-Marie & Rainer Hagen, 100 Masterpieces in Detail, Taschen. Pag.100.

[5] Ibidem. Pag.100.

[6] Enquanto à causa da morte foi originalmente pensada ter sido de disenteria. Em 2005 cientista forense, francês, Philippe Charlier examinou os seus restos mortais e determinou que a causa da morte foi envenenamento por mercúrio, mas não ofereceu nenhuma opinião sobre se ela foi assassinada.

[7] René Connat, Histoire de Montreuil, Village d'hier ville d'aujourd'hui, ses seigneurs et leurs domaines, 3e partie, 2012. p. 3

[8] No reverse do quadro e atestado pelo notário em 1775 pode ler-se: “A Virgem Santa, com feições de Agnès Sorel, amante do Rei Carlos VII de França, falecida em 1450”

[9] Da corte do rei Charles VII (1403-1422-1461). [nascimento-reinado-morte]

Fyllis e Aristóteles

Lucas Cranach, o Velho

Phyllis e Aristóteles, 1530

Durante a Idade Média eram muito populares os contos de carácter moralista (cautionary tales[1]) que satirizavam principalmente comportamentos sociais. A popularidade destes contos, nomeadamente a lenda de Aristóteles e Phyllis, estão representados em inúmeros desenhos, gravuras, litogravuras e mesmo em esculturas desta época. Estas imagens comungam da mesma mensagem: que o pecado original quando associado ao poder e à sedução feminina subjuga, humilha, castiga o homem. Segundo São Paulo (5-67 d.C.) na primeira Carta a Timóteo, diz: A mulher deve aprender em silêncio e ser submissa - Não admitido que a mulher dê lições ou ordens ao homem. Esteja calada, pois, Adão foi criado primeiro e Eva depois. Adão não foi seduzido pela serpente; a mulher foi e cometeu a transgressão[2]. São Tomás de Aquino (1225 – 1274) repete e amplia o mesmo pensamento discriminador: O homem está acima da mulher, como Cristo está acima do homem. É um estado de coisas imutáveis que a mulher esteja destinada a viver sob a influência do homem[3] acentuando assim a misoginia medieval e a culpabilidade da mulher.

Em 1386, o poeta inglês John Gower incluiu um resumo do conto no Confessio Amantis[4] uma colecção de histórias de amor imorais. Gower ironiza dizendo que a lógica e os silogismos do filósofo (Aristóteles) não o salvam.

I syh there Aristotle also,
Whom that the queene of Grece so
Hath bridled, that in thilke time
Sche made him such a Silogime,
That he foryat al his logique;
Ther was non art of his Practique,
Thurgh which it mihte ben excluded
That he ne was fully concluded
To love, and dede his obeissance

A lenda de Aristóteles e Phyllis tem vários relatos e interpretações, mas o conteúdo moralista permanece em todas elas: Aristóteles aconselhou Alexandre (O Grande), seu aluno, a evitar a amante sedutora Phyllis[5] — que ele trouxera da Índia numa das suas conquistas — porque o distraía na sua aprendizagem.

Phyllis sentiu-se preterida e desencadeou um jogo de sedução ao mestre, Aristóteles. Phyllis passou a deambular no jardim com umas vestes transparentes deixando a descoberto o corpo esbelto despertando o desejo do velho mestre. Seduzido e enlouquecido por amor e desejo, Aristóteles cedeu à tentação de Phyllis. Então, Phyllis propôs ao velho mestre, como prova de amor, que gostaria de montá-lo, como se fosse um cavalo e ela pudesse desempenhar o papel de “dominatrix”; para tal, deveria gatinhar e relinchar quando ela brandisse o chicote nas suas nádegas. Embrutecido pelo ardor concupiscente, Aristóteles concordou com a proposta. A cilada estava montada, Phyllis tinha secretamente dito a Alexandre que testemunhou o acto vexante. Estupefacto com a ousadia do mestre, Alexandre terá retorquido: — Quem fazeis vós nesses propósitos? (acompanhado por risos de troça de todos observadores).

Aristóteles terá respondido: — De nada serve o conhecimento, a razão, nem a provecta idade perante uma jovem sedutora que quis provar que os encantos de uma mulher poderiam superar o intelecto masculino do filósofo. Meu estimado príncipe, se um velho homem foi enganado por causa do amor (eros) veja o que lhe pode acontecer nas mãos de uma mulher.

 

George Pencz, Aristóteles e Fyllis. 1530

George Pencz, Aristóteles e Fyllis. 1530

Woodcut of Aristotle ridden by Phyllis by Hans Baldung, 1515

Woodcut of Aristotle ridden by Phyllis by Hans Baldung, 1515

Aquamanile in the Form of Aristotle and Phyllis, late 14th or early 15th century, Metmuseum

Aquamanile in the Form of Aristotle and Phyllis, late 14th or early 15th century, Metmuseum

texto: 2018 © Luís Carvalho Barreira


[1] A cautionary tale is a tale told in folklore, to warn its listener of a danger. There are three essential parts to a cautionary tale, though they can be introduced in a large variety of ways. First, a taboo or prohibition is stated: some act, location, or thing is said to be dangerous. Then, the narrative itself is told: someone disregarded the warning and performed the forbidden act. Finally, the violator comes to an unpleasant fate, which is frequently related in expansive and grisly detail. in Wikipedia

[2] Timóteo 2: 11-14.

[3] Santo Tomás de Aquino. Suma Teológica. VOL II. São Paulo: Edições Loiola Edição bilíngue, 2002, 1.92.1 p 611.

[4] Aparece no poema sobre Apolónio de Tiro (Livro 8, 271-2018).

[5] Phyllis também é descrita como amante de Alexandre, ou possivelmente esposa, em vez da esposa de seu pai.


Bathsheba segurando a carta do Rei David

Bathsheba holding king David's letter by Willem Drost, 1654.Louvre Museum

Bathsheba holding king David's letter by Willem Drost, 1654.

Louvre Museum


Segundo a Bíblia  (Livro Segundo de Samuel), o Rei David apaixonou-se por Bathsheba ao vê-la banhar-se, do alto do terraço de seu palácio. Sentiu-se atraído e chamou-a aos seus aposentos com quem manteve relações amorosas. Ao saber que Bathsheba era esposa de Urias, o Hitita, e que este estava há muito tempo em campanha militar, David ordenou que Urias regressasse, sugerindo que fosse passar uma noite com a esposa. Urias recusou, alegando que não era honroso fazê-lo deixando o exército de Israel e Judá numa batalha contra os amonitas. Tudo por um código de honra, os comandantes deverão permanecer acampados no campo de batalha ao lado dos seus soldados.

Após reiterada recusa, David enviou um oficial seu, comandante Joabe, com uma carta que ordenava colocar Urias na frente da batalha e assim deixá-lo sem protecção de modo a que ele fosse morto pelos inimigos. E foi o que aconteceu.

A esposa de Urias ficara grávida do Rei David, num caso de adultério.


texto: 2018 © Luís Carvalho Barreira



O profete Natã[1] desagradado fez saber (em profecia) ao rei David que esta criança não sobreviveria porque desobedeceu à palavra do Senhor e fez o mal aos seus olhos; arrebatou a esposa de Urias, o hitita, e sacrificou-o com a espada amonita que passou por ordem e acção a ser sua (Rei David).

Bathsheva e David tiveram um segundo filho[2] o Rei Salomão.

 

[1]  Foi um profeta que viveu durante o período do reinado de David e de Salomão, em Israel.

[2] Shimea, or Shammua, provavelmente a primeira criança de Bathsheba; Shobab de Bathsheba; Nathan (filho de David e Bathsheba) e segundo a Genealogia de Jesus em S. Lucas 3:31 possivelmente pai de Maria; Salomão (rei), de acordo com a genealogia de S. Mateus ascendente de José, pai de Jesus.


 

Ovo da Páscoa

Ovo, 1985

fotografia de Luís Carvalho Barreira


Muitos dos actuais símbolos ligados à Páscoa não são mais do que resquícios culturais, aglutinações existentes em algumas festividades pagãs ao longo da história da humanidade. Com o aparecimento do cristianismo, muitos desses rituais pagãos da celebração da passagem do Inverno para a Primavera foram adaptados, fundindo-se com a celebração da ressurreição de Cristo: a Páscoa.

Mas, porque costumamos presentear os nossos amigos e familiares com ovos na Páscoa? O que é que eles representam?

Todas estas actividades (rituais, festas, jogos) com ovos têm o seu significado e uma razão de ser, quer pelo seu carácter simbólico, quer pelo seu sinal metafórico. Ao longo de toda a história da humanidade, o Ovo foi sempre reconhecido como símbolo do renascimento, da esperança, da causa primeira, do gérmen, da origem e do princípio. Em suma, o Ovo confina em si o mistério da vida.

No século XVI, Cesare Ripa, no seu tratado de iconologia, descreve a “Fecundidade” (ver imagem) como uma “mulher coroada com folhas de zimbro que com as mãos aperta contra os seus seios um ninho de pintassilgos com os seus filhotes. Segundo Plínio, lib. X, cap. LXIII, o pintassilgo é um dos mais pequenos mas dos mais profícuos animais, pondo de cada vez doze ovos.

A seus pés, uma galinha com os pintos recém-nascidos, saindo de cada ovo. Do outro lado, uma lebre rodeada pelas crias.

O zimbro é a planta que possui sementes capazes de alimentar os animais. Os pintassilgos representam as crias, os filhos; as galinhas, os ovos e os coelhos anunciam a fertilidade, que é a maior bênção que uma mulher pode ter no casamento”. Toda esta imagem iconográfica (Mulher coroada com zimbro, acompanhada de Ovos, Pintassilgos, Coelhos, Galinhas) evidencia a aspiração ancestral do ser humano: o anseio de abastança, o desejo de fertilidade e de fecundidade.

Ancestralmente, certos povos pré-históricos efectuavam diversos rituais, por altura do equinócio da primavera, tendo como propósito nas suas preces o desejo de um ano novo, do renovar da esperança e sobretudo do desejo de abundância e fertilidade. Alguns destes costumes pagãos, apesar de aculturados, chegaram até nós com os mesmos propósitos de então. No Alentejo existe um ritual, em S. Pedro do Corval, onde as mulheres atiravam, e ainda atiram, calhaus rolados (supostamente ovos) para o topo de um aflorado rochoso, denominado “Rocha dos Namorados”, de configuração erecta, saído da terra procurando assim a fertilidade e a fecundidade desejadas. Segundo a tradição, ainda presente, as raparigas solteiras vão à “rocha dos namorados”, na segunda-feira de Páscoa, lançar uma pedra para cima do menhir procurando resposta sobrenatural em matéria do seu enlace: cada lançamento falhado representa mais um ano de espera do seu casamento.

Numa leitura mais atenta aos monumentos megalíticos circundantes, encontramos o Alinhamento ou Cromeleque dos Almendres (estas construções, únicas na Europa ocidental, estendem-se desde Inglaterra até Portugal), um recinto alongado, com cerca de uma centena de menhires, na sua maioria de forma ovoide, que constituiu, por certo, além de uma construção de carácter multifuncional capaz de organizar e estruturar a sociedade envolvente, uma estrutura de carácter religioso envolvendo, supostamente, rituais propiciatórios de fecundidade. Um dos menhires, situado na extremidade norte, exibe três imagens solares radiadas. Tal iconografia corresponde, provavelmente, ao momento final do Neolítico, quando na região se fizeram sentir as primeiras influências culturais das primeiras comunidades da idade dos metais, portadoras de uma nova estrutura religiosa. Esta religiosidade centrada numa divindade feminina, idealizada com grandes olhos solares, assumira-se como a grande deusa local, “ibérica”. Certamente que estas manifestações na Europa ocidental, feitas através de cerimónias de carácter sexual, com libações e outras ofertas corporais, não são alheias a um dos mais importantes rituais em honra de Ishtar, deusa da fertilidade, deusa dos arcádios. Esta divindade, Ishtar, não é mais do que a representação da deusa Inanna, herança dos seus antecessores povos sumérios; cognata da deusa Asterote dos filisteus; da deusa Isis dos egípcios; e da deusa Astarte dos Gregos. Mais tarde esta deusa, Ishtar, foi assumida também na mitologia Nórdica como Easter (Páscoa em Inglês), a deusa da fertilidade e da primavera.

Luís Barreira

Ishtar

British Museum, 2014

Fotografia

arquivo: 08_8477, 2014

No equinócio da primavera, os participantes em honra da deusa da fertilidade Easter pintavam e decoravam ovos escondendo-os em tocas nos campos, na sequência de anteriores práticas já exercitadas pelos Persas, Romanos, Judeus e Arménios.

Mais recentemente, os cristãos na Rússia czarista e a igreja ortodoxa, durante a celebração da Páscoa, tinham e ainda têm como costume, ao beijarem-se, dizer: "Cristo ressuscitou"… e ao mesmo tempo que recebem um presente, proclamavam: "Verdadeiramente, Cristo ressuscitou"…  Assim, quando o Czar Alexandre III encomendou, em 1885, ao célebre artista e ourives Peter Carl Fabergé uma obra de arte para presentear a imperatriz Maria Feodorovna na Páscoa, este criou uma série de ovos encaixáveis contendo no seu interior uma surpresa em ouro, prata e pedras preciosas sublimou artisticamente práticas culturais ancestrais.

Peter Carl Fabergé

Peter Carl Fabergé

Podemos encontrar outros ovos, embora mais modestos, mas também cheios de significado nos povos europeus de origem anglo-saxónica que os pintam escondendo-os nos jardins ou nas casas para que as crianças os possam encontrar. Na Inglaterra os jovens desenvolvem, durante a comemoração da Páscoa, uma actividade curiosa que consiste em fazer rolar os ovos por um plano inclinado até que um deles subsista intacto – o “egg rolling”. Prática semelhante pode ser encontrada na Ucrânia chamada de “KrepaK”, em que grupos de crianças visitam as casas pedindo ovos e depois num jogo/ritual os entrechocam, considerando-se vencedor o ovo cuja casca não se tenha quebrado.

E se o Ovo contém em si o mistério da vida celebremos a entrada da primavera e/ou a ressurreição de Cristo com alegria, com abundância, com fertilidade, com esperança na concretização dos nossos desejos e num futuro melhor.

 

Texto © Luís Barreira, 1991

Pietro Lorenzetti, Lamentação de Cristo (detalhe), 1310-1329FrescoBasilica de Assis, Itáliacréditos: wikipédia

Pietro Lorenzetti, Lamentação de Cristo (detalhe), 1310-1329

Fresco

Basilica de Assis, Itália

créditos: wikipédia