Se fizer uma visita a Roma preste atenção aos calhaus da história e não tropece nas estórias das imagens.
Depois de ter visitado a Igreja de San Pietro in Vincoli dirija-se para a escadaria dos Bórgias e detenha-se por alguns momentos viajando na história e nas lendas deste lugar.
Reza a lenda-histórica que foi neste local que Lucius Tarquinius Superbus protagonizou uma das mais hediondas histórias passionais romanas. Lucius terá matado a mulher, o irmão, o sogro e casado com a cunhada tornando-se o último rei do período monárquico (a.C. 534-509). Os factos históricos confirmam que Servius Tullio (sexto Rei de Roma entre c.578 e 535 a.C.) tinha duas filhas chamadas Tullia: Tullia Major e Tullia Minor e casou-as com os filhos do seu predecessor[1](Lucius que casou com Tullia Major e Arruns com Tullia Minor[2]). Desta união familiar Tullia Minor (a mais nova) ambicionava ser rainha e para tal envolveu-se com o cunhado (Lucius) prometendo-lhe que casaria com ele depois de afastar os mais directos sucessores (o seu irmão, Arruns, a cunhada, Tullia Major e o sogro; o Rei Servius Tullio). Reza a lenda que Tullia Minor vendo o pai em agonia, espojado no solo, passou com o carro puxado por cavalos por cima do corpo inerte. Suas ações fizeram dela uma figura infame na cultura romana antiga. Não é por acaso que este lugar ficou conhecido pelo “O Beco do Vilão” (Alley Scellerato).
Esta rampa também é conhecida pela escadaria Bórgia e pelo túnel que atravessa o Palácio de Vannozza dei Cattanei, senhora de uma estalagem em Campo dei Fiori cuja principal função era de satisfazer favores sexuais dos seus frequentadores incluindo a do amante, Rodrigo Bórgia (Papa Alexandre VI) e pai dos seus quatro filhos. Do Palácio resta uma pequena varanda ao gosto de “loggia veneziana” que apesar de ser um simples apontamento arquitectónico não deixa de exercer a todos os transeuntes – conhecedores da história da cultura e das artes – momentos de recriação histórica e protagonistas por breves instantes.
Regressemos à Igreja de San Pietro in Vincoli, percorramos a escadaria dos Bórgias, deixemos o chão conspurcado de ambição, traição e sangue dos últimos momentos da monarquia romana. Deixemo-nos levar pela emoção pela luz divina em Moisés e pelo último desejo de Júlio II: a construção de um mausoléu para última morada encomendada em 1505 e finalizada em 1545.
No lado direito da igreja, junto ao altar-mor, o túmulo de Júlio II é um conjunto decorativo e arquitetónico concebido por Michelangelo. A controvérsia da figura de Moisés, com dois chifres (ver análise desta obra com maior detalhe, aqui), aleado à forma como Júlio II foi retratado, numa pose reclinada, sedutora, porém comprometedora, leva-nos a analisar com maior detalhe a iconografia daquele dedo mindinho da mão direita de Moisés (fazendo salientar o músculo junto ao cotovelo). O que Michelangelo conhecia com detalhe era o estudo de anatomia. E o que toda Itália escarnava era no comportamento do Papa Júlio II que teve vários filhos (dos quais sobreviveu Felice della Rovere a mulher com maior influência e poder na época renascentista) e do seu gosto por “jovens e belos amantes” – segundo o cronista veneziano Giroliamo Priuli – “ele era um grande fã do 'vício sodomita' e gostava mais do sexo quando assumia o papel de passivo”. A vida do Papa Júlio II não era segredo para ninguém, ele viveu no Palácio Papal com o seu amante, Francesco Alidiosi, nomeado cardeal. Nunca esconderam as manifestações, sempre presentes, de afecto entre os dois. Até o diplomata veneziano, Marin Sanudo, compôs um soneto para a homossexualidade do Papa Júlio II. Em setembro de 2018, num artigo do New York Times intitulado "O problema da Igreja Católica com o sexo", o nome de Júlio II estava novamente referido. “Júlio II contraiu sífilis durante o pontificado, doença com predileção pelos padres, principalmente pelos ricos, como diziam na época do Renascimento”, relata o jornal americano. “Papa Julius II, conhecido como o Terrível. Um Papa gay que adoeceu com sífilis, nomeou o seu amante, cardeal, e viveu em excesso”.
Michelangelo sabia-o. Michelangelo conhecia o poder da arte...
Texto © Luís Carvalho Barreira
Notas: