Mistério na Galeria das Artes

Galeria das Artes - Palácio Marquês da FronteiraFoto: 1998

Galeria das Artes - Palácio Marquês da Fronteira

Foto: 1998

 

Texto[*] e fotos 1998 © Luís Carvalho Barreira

 

Um conjunto escultórico formado por sete esculturas (mais duas colocadas na fachada adjacente) situadas no terraço do Palácio Marquês da Fronteira fazem parte de um programa mais vasto cujo estudo deverá ter em conta todo o seu contexto envolvente. Trata-se do melhor e mais diversificado conjunto profano da segunda metade do século XVII que chegou aos nossos dias, praticamente íntegro, constituindo o «mais interessante e completo exemplo que possuímos duma vivenda nobre seiscentista[1]». Construído na última metade do século XVII, por iniciativa do 2º Conde da Torre e futuro Marquês da Fronteira, D. João de Mascarenhas, do primitivo palácio existente, «casa de campopavilhão de caça, segundo a tradição, manteve-se a estrutura inicial numa construção muito italianizante, muito clássica, de planta mais ou menos quadrada, com torreões nos cantos, separados por “loggias" que inicialmente eram abertas[2]». A proposta feita pelo orientador e esteta deste Palácio é reveladora da sua personalidade erudita, racionalista e humanista, patenteada na adopção do modelo de edifício escolhido, bem como, na preferência das Artes Liberais e dos temas profanos e sobretudo da mitologia greco-romana, que aparecem na decoração profusamente das paredes do palácio, reflectindo a herança de um tempo classicista[3]. Todo este conjunto programático permitiu a D. João de Mascarenhas, 1º Marquês de Fronteira (1632/1681), homem de Corte, cultor das Artes e das Letras, sob os auspícios de Apolo[4] deus tutelar da Academia dos Generosos[5], figurasse como um dos grandes vultos da cultura do século XVII. A decoração do edifício é quase toda ela revestida por azulejos figurativos (profanos) e abordam os mais diversos temas: no jardim os meses do ano, os signos do Zodíaco, os planetas, as constelações, cenas de caça e pesca. No terraço, totalmente forrado a azulejos, as Artes Liberais, as Faculdades Humanas e uma variedade de outros azulejos com cenas de caça, flores, atlantes e diversos animais. É neste local, Galeria das Artes, onde se encontra o grande enigma que nos propusemos e, ainda, continuamos a investigar.

A Galeria das Artes é um lugar mágico, talvez o local mais significativo e complexo em termos artísticos e iconográficos de todo o Palácio. As palavras de Alexis Collote de Jantillet são elucidativas da magnificência do local: «Aconselho-te que vejas a casa de campo ou palácio de Benfica do Marquês da Fronteira (homem eruditíssimo) que eu vi há poucos dias não sem sentir castigado por ter tardado tanto; e, certamente, incutir-te-ei o desejo de ir ali, ao descrever-te voluntariamente a beleza e graça do lugar...»[6].

Um conjunto de painéis de azulejos alusivos às 7 Artes Liberais (pintura, escultura, arquitetura, aritmética, geometria e astronomia) acompanhados e intercalados, por igual número de nichos com esculturas representativas dos 7 planetas (Lua, Mercúrio, Vénus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno, conhecidos na época: teoria geocêntrica) fazem parte de um vasto conjunto que deverá ser lido, segundo o poder eclesiástico (os jesuítas) influente na época, pelas 7 Virtudes (Fé, Esperança, Caridade, Justiça, Prudência e Temperança). Todas elas apelando, em última análise, para os 7 Sacramentos: Batismo, Confissão, Eucaristia, Ordem Sagrada, Matrimónio, Confirmação, a extrema-unção. Só assim se entende que passados vários anos (um século), desde a teoria heliocêntrica (de revolutionibus orbium coelestium, 1537) de Nicolau Copérnico, até à construção do Palácio Marquês da Fronteira o promotor tenha aceitado incluir no programa da Galeria das Artes uma teoria geocêntrica, desacreditada segundo o pensamento intelectual florescente do século XVII. 

 

Galeria das Artes (corpo escultórico e corpo cultural) 

 

O conjunto escultórico, de quem tentaremos aproximar-nos na descrição iconográfica e na análise estilística, distribui-se ao longo do terraço, também chamado Galeria das Artes. As sete[7] esculturas representando figuras mitológicas, mediando o Palácio e a capela, encontram-se inseridas em nichos (serliana), assentes em pedestais, contendo nas suas bases conchas em forma de vieiras que serviam de receptáculo[8] à água jorrada por finos tubos colocados estrategicamente nos atributos iconográficos. 

Os atributos iconográficos, que acompanham as esculturas, além de serem uma ajuda preciosa para identificar o tema do corpo escultórico presente, leva-nos a concluir que se tratavam de fontes ganhando um valor iconográfico acrescido simbolizando a Fonte. Fonte do ensinamento, pelas suas águas sempre novas num perpétuo rejuvenescimento. 

As Fontes ganham uma importância plástica significativa nos jardins renascentistas, o mesmo se passa nos jardins do Palácio Marquês da Fronteira que construído na ideia de Vila italiana[9] exalta os prazeres bucólicos e o imaginário do “jardim secreto” com todos os seus sistemas hidráulicos a jorrar a água, permitindo em diversos momentos do percurso exercitar o vigor plástico tão em voga no gosto europeu.

A sacralização das Fontes é universal, pois constituem a boca da água viva ou da água virgem. «Através delas dá-se a primeira manifestação, no plano das realidades humanas, da matéria cósmica fundamental, sem a qual não poderiam ser garantidas a fecundação e o crescimento das espécies. A água viva que elas deitam é, como a chuva, sangue divino, o sémen do céu[10]». As significações simbólicas da água podem reduzir-se a três temas dominantes: fonte da vida, meio da purificação, centro de regenerescência. Estes três temas encontram-se nas tradições mais antigas e formam as combinações imaginárias mais díspares, ao mesmo tempo que mais coerentes.

É nossa convicção de que as obras presentes na Galeria das Artes obedeceram a um projecto extremamente preciso por parte do seu promotor, quer no valor imagético e iconográfico que deveria obedecer a uma interpretação erudita de gosto clássico, quer na enunciação do programa escultórico, introduzindo valores moralistas ou moralizantes, tão a preceito do poder espiritual corporizado pelos Jesuítas. 

Assim, as esculturas da Galeria das Artes de concepção clássica patenteiam um carácter singular no panorama da escultura em Portugal, quer pelo seu carácter invulgar, quer pela sua conotação profana. Pode, todavia, afirmar-se que a temática deste conjunto escultórico se integra num mais vasto e complexo programa dos jardins do Palácio Marquês da Fronteira, cuja concepção parece ter tido como fonte principal a literatura clássica[11] e tem a sua descrição iconográfica em numerosos autores dos quais destacamos Cesare Ripa, por sintetizá-los e por conferir ao seu livro Iconologia o pensamento da época.

Analisando iconologicamente as esculturas pela disposição que ocupam na Galeria das Artes podemos descortinar: Diana, Mercúrio, Vénus, Apolo, Júpiter, Marte e Saturno.

Diana (Lua):Filha de Zeus e de Leto, Ártemis é a irmã gémea de Apolo. Virgem desconfiada e vingativa, sempre indomável, aparece na mitologia como o oposto de Afrodite. Ártemis «a ruidosa Ártemis, que arremessa as flechas com o arco de ouro, a irmã d…

Diana (Lua):

Filha de Zeus e de Leto, Ártemis é a irmã gémea de Apolo. Virgem desconfiada e vingativa, sempre indomável, aparece na mitologia como o oposto de Afrodite. Ártemis «a ruidosa Ártemis, que arremessa as flechas com o arco de ouro, a irmã do Arqueiro[12]». Caçadora, massacra os animais que simbolizam a doçura e a fecundidade do amor, os cervos e as corças, excepto quando são jovens e puros. Segundo, Bocaccio, na sua Genealogia dos Deuses, descreve Diana como «mulher de aspecto virginal que vai num carro puxado por dois cavalos, um branco e o outro negro, simbolizando, assim, a Lua que cumpre o seu curso de dia como de noite. O carro, também, podia ser puxado por cervos, já que o trajecto percorrido pela Lua se realiza mais velozmente do que qualquer outro planeta, por ser o planeta com a órbita mais reduzida. Prudêncio veste a Lua com um subtil véu branco[13]».

A Lua no sistema geocêntrico ocupava a primeira posição.

Mercúrio (Mercúrio):«Um dos símbolos da inteligência realizadora; preside ao comércio. Tem por atributo sandálias aladas, que significam a força de elevação e a aptidão para os deslocamentos rápidos. (...). Mensageiro por excelência, chamado às veze…

Mercúrio (Mercúrio):

«Um dos símbolos da inteligência realizadora; preside ao comércio. Tem por atributo sandálias aladas, que significam a força de elevação e a aptidão para os deslocamentos rápidos. (...). Mensageiro por excelência, chamado às vezes por uma palavra que de Evangelho, o mensageiro da boa nova, Hermes simboliza os meios de troca entre o Céu e a Terra, a mediação, em suma, meios que se podem perverter em comércio simoníaco ou elevar-se até à santificação. Assegura a viagem, a passagem entre os mundos infernais, terrestre e celestes[14]».

Mercúrio é o segundo planeta do sistema geocêntrico.

Vénus (Vénus):«Deusa da mais sedutora beleza, cujo culto é celebrado em numerosos santuários da Grécia, e principalmente na ilha de Citera. Filha do esperma de Urano (o Céu) derramado no mar, depois da castração do Céu por pelo seu filho Cronos» (da…

Vénus (Vénus):

«Deusa da mais sedutora beleza, cujo culto é celebrado em numerosos santuários da Grécia, e principalmente na ilha de Citera. Filha do esperma de Urano (o Céu) derramado no mar, depois da castração do Céu por pelo seu filho Cronos» (daí a lenda do nascimento de Afrodite, surgindo da espuma do mar representada magistralmente em “Nascimento de Vénus” de Botticelli). A concha que sustenta na mão significa, segundo alguns autores, a forma como nasceu do mar. «Simboliza as forças irreprimíveis da fecundidade, não nos seus frutos, mas sim no desejo apaixonado que ateia entre os seres vivos. É o amor em forma física, o desejo e o prazer dos sentidos[15]». Segundo Cesare Ripa, «Vénus representa-se jovem, nua e bela, com uma coroa de rosas, levando na sua mão uma concha marinha. Representa-se nua, por despertar o apetite dos abraços lascivos; ou também porque quem anda em casas de prazeres venéreos, muitas vezes acaba desnudado e privado de todo bem, por quanto as riquezas são sempre devoradas por mulheres lascivas; debilitando-se por conseguinte o corpo, e manchando a alma com tanta indecorosidade, que nada de belo se poderá encontrar em tal acção».

Pela sua fogosidade representa o terceiro planeta (Vénus) da Teoria Geocêntrica.



Apolo (Sol)[16]:«Representa-se o Sol por uma figura (masculina) jovem e nua. Tem o braço direito estendido que sustém com a mão aberta três figurinhas que representam as três Graças. Com a esquerda segura um arco e as setas, aparecendo morta a seus …

Apolo (Sol)[16]:

«Representa-se o Sol por uma figura (masculina) jovem e nua. Tem o braço direito estendido que sustém com a mão aberta três figurinhas que representam as três Graças. Com a esquerda segura um arco e as setas, aparecendo morta a seus pés uma serpente atravessada por uma flecha. (...). Com sua juventude simboliza a pujança do Sol, sempre produtor, graças ao calor que desprende. Sustém com a esquerda as três Graças, mostrando assim quão belo é neste mundo a sua luz[17]».

Aparecendo de noite, na Ilíada, «deus de arco de prata, o Febo Apolo brilha como a Lua».

Apolo nasceu no sétimo dia do mês. Ésquilo baptizou-o o augusto Deus sétimo, o Deus da sétima porta. As suas festas principais eram sempre celebradas no dia sete de cada mês: a sua lira tinha sete cordas; a sua doutrina resuma-se em sete máximas, atribuídas a sete sábios.

Dada a sua proximidade da Terra e o seu curso, movimento, era semelhante à da Lua e por ser mais lento do que Mercúrio e Vénus, acreditava-se que ele (Sol) ocupava a quarta posição.

Júpiter (Júpiter)[18]:«Deus supremo dos romanos, correspondente ao Zeus dos gregos. Ele aparece como a divindade do Céu, da luz diurna, das condições climatéricas e também do raio e do trovão... o poder soberano, o presidente do concílio dos deuses,…

Júpiter (Júpiter)[18]:

«Deus supremo dos romanos, correspondente ao Zeus dos gregos. Ele aparece como a divindade do Céu, da luz diurna, das condições climatéricas e também do raio e do trovão... o poder soberano, o presidente do concílio dos deuses, aquele de quem emana toda a autoridade. Júpiter simboliza a ordem autoritária, que é imposta do exterior. Seguro do seu direito e do seu poder de decisão, não procura nem o diálogo, nem a persuasão: troveja[19]».

Pelo seu tamanho e pela sua posição, pelo lento movimento, o planeta que tem o nome de Júpiter ocupa o lugar central entre os astros que giram em volta da Terra[20]. É precedido por Lua, Mercúrio, Vénus, Sol e Marte, e é seguido por Saturno. Em analogia com este lugar de eleição, Júpiter encarna na astrologia um princípio do equilíbrio, da ordem, da estabilidade no progresso, da abundância, da preservação da hierarquia estabelecida. foi o planeta da legalidade social, da riqueza, do optimismo e da confiança. Os Antigos deram-lhe o nome de grande benfeitor. governa, no Zodíaco, o Sagitário, signo da justiça, e os Peixes, signo da filantropia.

Júpiter é o sexto planeta.

Marte (Marte)[21]:«Deus da Guerra, ares é filho de Zeus e de Hera. Brilhantemente armado de elmo, couraça, lança e espada, simboliza a força bruta, a dos que se vangloriam do seu tamanho, peso, rapidez, tumulto, capacidade de massacre e de troçar da…

Marte (Marte)[21]:

«Deus da Guerra, ares é filho de Zeus e de Hera. Brilhantemente armado de elmo, couraça, lança e espada, simboliza a força bruta, a dos que se vangloriam do seu tamanho, peso, rapidez, tumulto, capacidade de massacre e de troçar das questões da justiça, moderação e humanidade. Sacia-se com o sangue dos homens, diz Ésquilo[22]». Mais uma vez a escultura da Galeria das Artes segue de perto a iconografia de Cesare Ripa: «Representa-se desde os tempos antigos como uma figura de um homem feroz e terrível aspecto. Assim, Estacio, no seu sétimo livro da Tebaida, arma-o de armadura, toda lavrada com monstruosos espantos, cobrindo a cabeça com um elmo que tem um pássaro por cima». Leva uma lança.

Marte é o quinto planeta.

Saturno (Saturno)[23]:«É o planeta maléfico dos astrólogos, cuja luz triste e fraca foi, desde os primeiros tempos, evocadora de tristezas e provações da vida e que a alegoria representa com traços fúnebres de um esqueleto com uma foice[24]». Na fig…

Saturno (Saturno)[23]:

«É o planeta maléfico dos astrólogos, cuja luz triste e fraca foi, desde os primeiros tempos, evocadora de tristezas e provações da vida e que a alegoria representa com traços fúnebres de um esqueleto com uma foice[24]». Na figura mitológica grega, Cronos, para não ser destronado pela sua progenitura, segundo as previsões dos seus pais, ele devora os seus próprios filhos assim que eles nascem.

Saturno de rosto triste, mostrando assim a melancolia, condição deste planeta; por quanto Saturno, entre os antigos, significa o Tempo, por isso aparece com uma idade avançada que é a que mais se adequa à sua lentidão no sistema planetário. A escultura na Galeria das Artes representa Saturno segundo a descrição de Cesare Ripa: «representa-se com uma foice na mão, por quanto o tempo cega e abate todas as coisas. A criança que está a ser devorada mostra como o Tempo destrói, inclusive, as jornadas diárias, apesar de ser ele mesmo o pai que as gerou[25]».

Saturno é a sétima e última representação da teoria geocêntrica.

(...)

Porém, existe um erro na representação planetária, segundo a teoria geocêntrica, neste conjunto de esculturas distribuídas ao longo da Galeria das Artes! Fazendo uma leitura, da esquerda para a direita, ou seja, desde a capela até ao Palácio e por esta ordem sequencial, pudemos identificar (em 1998) as seguintes (sete) esculturas representando o sistema planetário: 

Lua, Mercúrio, Vénus, Sol, JúpiterMarte e Saturno.

ao invés do que era suposto

Lua, Mercúrio, Vénus, Sol, MarteJúpiter e Saturno.

Modelo geocêntrico segundo Bartolomeu Velho, 1568

Modelo geocêntrico segundo Bartolomeu Velho, 1568

As sete esculturas (ordenadas no Palácio do seguinte modo: Diana, Mercúrio, Vénus, Apolo, Júpiter, Marte e Saturno) representam os sete planetas (teoria geocêntrica; Lua, Mercúrio, Vénus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno[26]) segundo o entendimento clássico vigente nas Academias da época que “iluminavam o mundo”. 

Esta crença pressupõe um duplo movimento de pensamento: uma primeira projecção entre as relações dos planetas e as relações analógicas que existem entre os humanos e, em contrapartida, uma projecção para o comportamento humano de fenómenos observados na evolução relativa dos astros. Cada um dos planetas, dotados de um certo poder sobre os mortais, exercendo uma influência sobre os seres vivos da terra.

Aos sete planetas «correspondem os sete céus, os sete dias da semana, as sete direcções do espaço, os sete estados ou as sete operações da alma, as sete virtudes teologais e morais, os sete dons do Espírito Santo, os sete metais, as sete fases da Grandes Obra, etc.»[27]

A simbologia planetária, quase inesgotável, assinala a crença numa simbiose entre a Terra e o Céu, animada por uma constante interacção entre os níveis do cosmos - o microcosmo (homem) por oposição com o macrocosmo (Universo).

No entanto, pudemos descortinar que a ordem das esculturas Júpiter e Marte estão trocadas alterando o sentido da representação dos planetas segundo a teoria geocêntrica ou qualquer outra teoria porventura existente. Esta troca não nos parece propositada e muito menos revela ignorância da parte do “arquitecto” de tão ambicioso projecto. Muitas interrogações poderão fazer-se acerca de tal troca mas a resposta poderá ser encontrada em algumas obras de restauro e conservação do Palácio assim como do jardim: em «1755 realizaram-se obras de vulto após terramoto, passando a constituir residência permanente da família Mascarenhas; 1924, a partir desta data foram realizados pelo 10º Marquês da Fronteira muitos melhoramentos nos Jardins do Palácio; 1941, o ciclone que assolou Lisboa terá sido o factor responsável pelas últimas transformações ocorridas na vegetação do Jardim Grande[28]». Ou, ainda, quando desactivaram a canalização das fontes (esculturas) por motivos de infiltrações no interior do Palácio.

Em epílogo, neste vasto programa arquitectónico e artístico não deslindamos quais os motivos para que Júpiter e Marte ocupem posições erradas. Algumas conjecturas históricas ou registos de prováveis acontecimentos talvez possam justificar este mistério.


[…]

 

ver: Artes Liberais (Galeria das Artes)


[*] Texto extraído do rabalho realizado para a cadeira de Arte e Tecnologia, Mestrado de Teorias da Arte, FBAUL, 1998. Lecionada pela Prof. Dr.ª Margarida Calado.

[1] Raul Lino, A casa portuguesa. Exposição de Sevilha, in José Cassiano Neves, 1995, pp. 16 e 135.

[2] Segundo Alexis Collot Jantillet, «natural do ducado de Lorena, foi secretário do irmão de D. João IV, o Infante D. Duarte (1605-1649), quando este esteve na Alemanha como oficial de Filipe IV. Depois da morte do Infante, Jantillet passou a Portugal, onde já se devia encontrar em 1659, data da publicação, à custa de Pedro Çurita, livreiro de Lisboa, de Abucilla (Ruão, 1659). Nomeado “oficial de línguas na Secretaria de Estado”, passa a receber em 1665 sessenta mil reis de tença. Foi-lhe outorgado por volta de 1669 o hábito de Cristo. Poeta neolatino, publicou o já citado Abucilla dedicado ao infante D. Duarte, Helvia Obsidione Liberata auspiciis Alphonsi 6 (Lisboa, 1662), sobre a batalha das Linhas de Elvas e Horae Subsecivae (Lisboa, 1679), dedicado ao segundo marquês de Fronteira e terceiro Conde da Torre, Fernando Mascarenhas (1665-1729). Jantillet foi membro da Academia dos Generosos desde 1660» in Luís de Moura Sobral, Pintura e Poesia na Época Barroca, Editorial Estampa, Lisboa, 1994. p.31.

[3] As letras portuguesas do séc. XVI renascem na atmosfera neoclássica com o apoio de traduções que vêm a lume (Cândido Lusitano, por exemplo, traduz a Arte Poética de Horácio, as tragédias Édipo de Sófocles, Medeia, As Fenícias, Ifigénia em Àulide e Ifigénia em Táuride, entre outras, de Eurípides) e reedições de clássicos portugueses.

[4] Apolo é o símbolo da vitória sobre a violência, da aliança entre a paixão e a razão. Nasceu no sétimo dia do mês: a sua lira tinha sete cordas, o 7 é o número da perfeição, aquele que une simbolicamente o Céu e a Terra e também o número de Apolo.

[5]Surgiram em Portugal a Academia dos Generosos (1647), a Academia dos Singulares (Lisboa, 1663), a Academia dos Anónimos (1714), a Academia dos Solitários (1664), a Academia dos Únicos (1691), a Arcádia Lusitana (1757), a Academia das Belas Artes (1790), logo chamada Nova Arcádia. 

Da Academia dos Generosos e dos Singulares, disse D. Francisco Manuel: «Com epítetos particulares se apelidaram todos os académicos do mundo: Confiados se chamaram os de Pavia; Declarados, os de Siena; Elevados, os de Ferrara; Inflamados, os de Pádua: Unidos, os de Veneza...».

Marieta Dá Mesquita refere a relação de D. João de Mascarenhas com a Academia dos Generosos na sua tese de Doutoramento. 1993, Vol. I, pp.402-405.

[6] Ana Paula Correia-Arnould, in Monumentos, nº7, p.61.

[7] O sete é o número da perfeição, aquele que une simbolicamente o Céu e a Terra, o princípio feminino e o princípio masculino, as trevas e a luz. Ora, é também o número de Apolo.

[8] Em conversa com D. José de Mascarenhas foi-nos dito que por motivos de infiltrações de águas, dentro do Palácio, causada pela deterioração das canalizações, estas foram desactivadas remontando, provavelmente, em tempo anterior à sua mãe.

[9] É nossa opinião que os jardins do Palácio Marquês da Fronteira são de inspiração renascentista italiana e em particular nas Vila Madona e Vila Aldobrandini. Ramalho Ortigão (in Arte e Natureza em Portugal) refere esta analogia descrevendo o Palácio Marquês da Fronteira como uma «edificação cheia de interesse arquitectónico e decorativo, desde o pórtico brasonado, à escadaria de balaústres, o vestíbulo de entrada, onde sempre soa a voz plangente da água, até às deliciosas varandas que abrem sobre os jardins. É flagrante, na silhueta geral dos dois terraços em loggias sobrepostas a um vasto lago, a analogia desta composição, de gosto e estilo da Renascença italiana, com a Vila Madona, obra de Júlio Romano e de Rafael, hoje mui arruinada, em Roma.»

[10] Jean Chevalier, in Dicionário de Símbolos.

[11] Segundo conversa com Liliana Prestes de Almeida a Metamorfoses de Ovídio foi a obra que serviu de expressão ao programa do Palácio.

[12] Homero, Ilíada, canto XX, Europa-América, 1988, p.285.

[13] Cesare Ripa, Iconologia, p.164.

[14] Jean Chevalier, in Dicionário de Símbolos.

[15] Idem, Ibidem.

[16] Esta escultura de Apolo (Sol), como a de Saturno, assenta numa base arredondada.

[17] Cesare Ripa, Iconologia, p.167.

[18] Ocupa erradamente, na Galeria das artes, a posição de Marte do sistema geocêntrico.

[19] Jean Chevalier, in Dicionário de Símbolos.

[20] Conforme a teoria Geocêntrica.

[21] Ocupa erradamente, na Galeria das artes, a posição de Júpiter do sistema geocêntrico.

[22] id. ibidem.

[23] Esta escultura de Saturno, como a de Apolo (Sol), assenta numa base arredondada.

[24] id. ibidem.

[25] Cesare Ripa, Iconologia, p.170. citando Bocaccio, lib. IV., na sua Genealogia dos Deuses

[26] Erwin Panofsky diz que “muitos dos trabalhos científicos, especialmente tratados de astronomia, onde imagens mitológicas aparecem tanto entre as constelações (como Andrómeda, Perseu, Cassiopeia) como entre os planetas (Saturno, Júpiter, Marte, Sol, Vénus, Mercúrio, Lua)”. in Estudos de Iconologia, p.33.

[27] Jean Chevalier, in Dicionário de Símbolos.

[31] in Monumentos, número 7. p.114.

Diego Velázquez, Vénus ao espelho, 1647-51

Mary Richardson

Mary Richardson

O único nu conhecido de Diego Velázquez: Vénus ao Espelho, 1647-51

Em 10 de Março de 1914 a pintura de Diego Velázquez, Vénus ao espelho (Toilet of Venus ou Rokeby Venus), foi atacada por Mary Richardson, desferindo-lhe sete golpes com um cutelo que quase destruiu, irremediavelmente, a pintura. Mary Richardson, uma mulher sufragista, haveria de justificar: “Tentei destruir a pintura da mais bela mulher na história da mitologia como um protesto contra o governo por destruir a Sra. Pankhurst, que é a pessoa mais formosa da história moderna”[1]. (Referia-se, supostamente, à sua companheira Emmeline Pankhurst que tinha sido presa no dia anterior ao acto perpetrado). 

Diego Velázquez, Vénus ao espelho, 1647-51Dimensões: 142x177 cmNational Gallery, Londres

Diego Velázquez, Vénus ao espelho, 1647-51

Dimensões: 142x177 cm

National Gallery, Londres

Durante o século XVII, com endurecimento da Igreja Católica na formatação de uma moral saída da Contra-Reforma, a pintura do nu feminino fora desencorajada e a sua representação foi conotada com o pecado capital da Luxúria. A Inquisição espanhola através do Tribunal do Santo Ofício haveria de perseguir todas as imagens pagãs, assim como elencar, no Index Librorum Prohibitorum,todos os livros proibidos. A fogueira era o destino encontrado para as obras ou para os autores. Quanto muito algumas pinturas toleradas pelo carácter moralista e educativo (ver: Inferno no MNAA). É sabido que no período renascentista a representação clássica do nu foi hábil em transformar histórias mitológicas em prazeres libertinos dos seus promotores e ou dos coleccionadores. Nobres e Príncipes, Reis e Papas, desejosos de fama e glória vão patrocinar as artes fazendo representar-se, dissimuladamente, nas obras; quer pela orientação da encomenda introduzindo-lhes valores simbólicos alusivos ao seu estatuto social ou da sua família, quer mesmo pela própria representação sugerida, muitas das vezes, pelos seus traços fisionómicos das personagens envolvidas. O “Nascimento de Vénus” de Botticelli é uma obra  paradigmática deste nosso ponto de vista: Vénus não aparece neste quadro somente como a deusa do amor e da beleza, é muito mais: é o modelo, a musa, a amante, do artista. Mas é também a paixão doentia do mecenas Juliano de Médicis que  encomendou tal pintura: falamos da “La Bella Simonetta”, Simonetta Vespucci[1], a mulher por quem os homens morrem de amores. Botticelli continuou a utilizar o seu rosto como modelo ideal para as suas pinturas. A Vénus, deusa do amor e da paixão, começa a parecer-se com as suas amadas e amantes resvalando para aquilo que poderíamos chamar de “humanismo sensual”: um novo cânone de beleza. Este erotismo na intimidade, a partir do século XVII, vai emancipar-se e deixar ter cobertura somente em histórias da mitologia clássica passando a ser vivenciado na primeira pessoa. O quadro em apreço, Vénus ao Espelho, de Diego Velázquez não é uma pintura mitológica. É uma mulher – Vénus - que nos fita no espelho seguro por uma criança com umas pequenas asas empunhando alguns laços – Eros - amarrando-nos a uma cumplicidade concupiscente transformando-a em mito. Mito porque não conhecemos a sua identidade e preferimos apelidá-la de Vénus ao espelho de Velázquez. Não desejamos (queremos) saber se foi encomenda do famoso libertino, Marquês de Eliche, retratando uma das suas amantes; ou mesmo se se trata da Olimpia Trunfi amante de Diego Velázquez de quem teve um filho ilegítimo. A história deste quadro é a história da vida privada de colecionadores frequentadores da corte, de uma elite ligada ao poder, que alimentava a saciedade erótica da diplomacia a cobro de histórias mitológicas. Assim, este quadro ornamentou os espaços privados da Casa de Alba; pertenceu à colecção privada de Manuel Godoy juntamente com a Vénus de Urbino de Ticiano e a Maja desnudade Goya; foi levado para a Inglaterra e pendurada em Rokeby Park (de onde provém seu apelido Rokeby Venus) acabando por ser adquirida pela National Gallery, para mais tarde, em 10 de Março de 1914, ser seriamente danificada pela sufragista Mary Richardson. 

Mas o que é que levaria Mary Richardson a cometer tal atitude? Mera luta política na defesa dos direitos das mulheres? Numa entrevista dada ao Sindicato Político e Social de Mulheres, em 1952, acrescentou que “não gostava do jeito como os visitantes masculinos olhavam para ela todo o dia[2]”.

 

Luís Barreira © 2007

 

 

BIBLIOGRAFIA

Lourdes Ortiz, Las Manos de Velázquez, planeta, 2006

Thomas Hoving (ex-director do Metropolitan Museum of Art), Masterpiece, 2015

 


[1]Antes de morrer, Botticelli pediu para ser enterrado aos pés de Simonetta.

[2]ibidem



[1]Prater, Andreas (2002). Venus at her mirror. Velázquez and the art of nude painting. Munique; Nova Iorque: Prestel. 133 páginas.

Bathsheba segurando a carta do Rei David

Bathsheba holding king David's letter by Willem Drost, 1654.Louvre Museum

Bathsheba holding king David's letter by Willem Drost, 1654.

Louvre Museum


Segundo a Bíblia  (Livro Segundo de Samuel), o Rei David apaixonou-se por Bathsheba ao vê-la banhar-se, do alto do terraço de seu palácio. Sentiu-se atraído e chamou-a aos seus aposentos com quem manteve relações amorosas. Ao saber que Bathsheba era esposa de Urias, o Hitita, e que este estava há muito tempo em campanha militar, David ordenou que Urias regressasse, sugerindo que fosse passar uma noite com a esposa. Urias recusou, alegando que não era honroso fazê-lo deixando o exército de Israel e Judá numa batalha contra os amonitas. Tudo por um código de honra, os comandantes deverão permanecer acampados no campo de batalha ao lado dos seus soldados.

Após reiterada recusa, David enviou um oficial seu, comandante Joabe, com uma carta que ordenava colocar Urias na frente da batalha e assim deixá-lo sem protecção de modo a que ele fosse morto pelos inimigos. E foi o que aconteceu.

A esposa de Urias ficara grávida do Rei David, num caso de adultério.


texto: 2018 © Luís Carvalho Barreira



O profete Natã[1] desagradado fez saber (em profecia) ao rei David que esta criança não sobreviveria porque desobedeceu à palavra do Senhor e fez o mal aos seus olhos; arrebatou a esposa de Urias, o hitita, e sacrificou-o com a espada amonita que passou por ordem e acção a ser sua (Rei David).

Bathsheva e David tiveram um segundo filho[2] o Rei Salomão.

 

[1]  Foi um profeta que viveu durante o período do reinado de David e de Salomão, em Israel.

[2] Shimea, or Shammua, provavelmente a primeira criança de Bathsheba; Shobab de Bathsheba; Nathan (filho de David e Bathsheba) e segundo a Genealogia de Jesus em S. Lucas 3:31 possivelmente pai de Maria; Salomão (rei), de acordo com a genealogia de S. Mateus ascendente de José, pai de Jesus.


 

Lupercália

Andrea Camassei, Lupercália, 1635Museu do PradoPintura

Andrea Camassei, Lupercália, 1635

Museu do Prado

Pintura


Lupercália

As festas e as festividades religiosas na civilização romana eram uma constante ao longo do ano. Não havia, praticamente, uma semana sem festividades. Mas de todas, aquela que ganhava maior dimensão popular, de igualdade entre os participantes, era a Saturnália pela alegria e permissividade que estes festejos proporcionavam. A Saturnália, em honra de Saturno, (realizada em meados de Dezembro e que durava até ao final do mês) tinha como principal ritual o sacrifício de animais (bodes) seguido de um banquete público. Realizada numa atmosfera onde quase tudo era permitido, onde os escravos e os libertos ganhavam dignidade de pessoas livres, onde os deveres de cidadania eram suspensos, onde estes momentos culminavam em folia e em festa mais desejada. Por fim, visitavam-se os familiares e amigos e trocavam-se presentes em privado[1].

A Saturnália culminava o ano agrícola. Finalizava o desejo e a concretização de um ano próspero e abundante. E o próximo ano agrícola ainda vem longe. As sementes serão lançadas à terra em finais de Fevereiro, princípio de Março; o início da Primavera. É tempo, ainda, de festejos que em rigor só terminarão em Fevereiro com a Lupercália. A Lupercália celebrada a XV Kalendas Martias, que corresponde hoje ao dia 15 de fevereiro[2], era uma festa religiosa ritualizada por um certo número de pessoas, os Luperci sodales, recrutados pelos Patrícios, que orientavam as festividades no sentido da purificação da sociedade romana. Os Luperci sodales são oriundos de um corpo especial de sacerdotes que se reuniam na gruta de Lupercal (onde se crê que a loba amamentou os gémeos Rómulo e Remo, fundador da cidade de Roma). Neste local eram imolados dois bodes e um cão e os sacerdotes vestiam-se com as peles dos animais sacrificados, aos quais cortavam algumas tiras de pele do bode (as Fébruas[3]) ungidas com sangue. Com as Fébruas em riste perseguiam as pessoas que assistiam aos rituais, chicoteavam-nas e acossavam especialmente as mulheres. Certas mulheres. As mais jovens ou aquelas que não tinham filhos que tocadas pelas Fébruas acreditavam ficar férteis. Estes cortejos populares de perseguições com as Fébruas em riste expiando os males sociais, personificados na figura do Fauno Lupércio (nome de Pã para os romanos[4]), aumentavam o contacto físico e o desejo sexual associado à folia.

De folia em folia chegámos ao Dia dos namorados.

 

Texto: 1999-2017 © Luís Carvalho Barreira


[1] O Cristianismo fará coincidir esta data com a do nascimento de Cristo e por sua vez a comemoração do Natal.

[2] Em 494 d.C., o Papa Gelásio I proibiu e condenou oficialmente essa festa pagã. Numa tentativa de cristianizá-la, substituiu-a pelo 14 de fevereiro, dia dedicado a São Valentim.

[3] Fevereiro tem origem etimológica em Fébrua.

[4] Deus dos bosques, dos campos, dos rebanhos e dos pastores. Pã é representado com orelhas, chifres e pernas de bode; amante da música e traz sempre consigo uma flauta, a flauta de Pã.

 


Nicolas PoussinThe Triumph of Pan1636credits: National Gallery

Nicolas Poussin

The Triumph of Pan

1636

credits: National Gallery

O massacre dos inocentes

Peter Paul Rubens, Massacre dos inocentes, 1612-13

Peter Paul Rubens, Massacre dos inocentes, 1612-13

O Massacre dos Inocentes é um episódio descrito no Evangelho de Mateus sobre o infanticídio perpetrado pelo rei da Judeia, Herodes. O anúncio pelos Reis Magos de um novo Rei ter nascido fez com que Herodes ordenasse a sua captura e o trouxesse à sua presença. “Então Herodes, chamando secretamente os magos, inquiriu exactamente deles acerca do tempo em que a estrela lhes aparecera”. (Mateus 2:7). Desconfiado, Herodes, ordenou aos Reis Magos que fossem de imediato ao encontro do menino e no regresso lhe dissessem o lugar exacto, para que o pudesse adorar também. Os Reis Magos chegados diante do Menino oferendaram-no com ouro, incenso e mirra. No regresso foram avisados em sonho pelo anjo do Senhor que lhes retorquiu para não dizer nada ao rei Herodes do nascimento de Cristo e assim apanharam outra estrada evitando passarem por Jerusalém. Herodes, irado, mandou matar todos os meninos da vila de Belém com menos de dois anos numa derradeira tentativa de não perder o trono para o Rei dos Judeus.

Outras representações ao longo da História:

Mosaico: Massacre dos Inocentes, na Igreja de São Salvador em Chora, considerada um dos mais belos exemplos das igrejas bizantinas.

Mosaico: Massacre dos Inocentes, na Igreja de São Salvador em Chora, considerada um dos mais belos exemplos das igrejas bizantinas.

Massacre dos Innocentes, fresco de Giotto di Bondone na Capela Scrovegni de Pádua, 1304-1306

Massacre dos Innocentes, fresco de Giotto di Bondone na Capela Scrovegni de Pádua, 1304-1306

Fra Angelico, Massacre dos Inocentes, 1451-2

Fra Angelico, Massacre dos Inocentes, 1451-2

"Caridade romana"

Peter Paul Rubens, Pero e Cimon, 1630.Óleo s/tela, 155x190 cmRijksmuseum, Amsterdão

Peter Paul Rubens, Pero e Cimon, 1630.

Óleo s/tela, 155x190 cm

Rijksmuseum, Amsterdão

Apresentei esta imagem aos meus alunos, como forma de provocação, pedindo-lhes que analisassem esta pintura, isto é, a sua interpretação iconográfica subjacente; em primeiro lugar a mensagem (tema), depois o autor, a época e a sua envolvência sociocultural. Alertei-os que olhar não é ver. E nem tudo o que parece é. Mas o Carlos, o mais afoito, sem tento na língua expressou o nível mais básico de entendimento: “mamar na chucha”!

Deu-me a “deixa” pretendida para que pudesse explanar a história exemplar de uma filha (Pero) que secretamente amamenta o pai (Cimon) depois que ele ser preso e condenado à morte por inanição. O antigo historiador romano Valerius Maximus regista este acontecimento como um grande acto de piedade filial e honra romana em De FACTIS Dictisque Memorabilibus, Libri IX: conhecida por Caridade romana. Entre os romanos o tema não era desconhecido, já os etruscos cultivavam o mito de Juno a amamentar o adulto Hércules sublinhando o valor altruístico.

Regressados ao quadro (pintura) de Peter Paul Rubens, retirada toda a carga erótica atribuída pelo aluno, foi mais fácil descodificar toda a acção: Pero é descoberta pelos guardas (no canto superior direito) a amamentar Cimon (pai) agrilhoado no cárcere. O amor deste acto impressiona a justiça ordenando a sua libertação.

A Consequência da Guerra, 1637-38

Peter Paul Rubens A Consequência da Guerra, 1637-38 Óleo s/tela 206 cm × 345 cm Palácio Pitti, Florença

Peter Paul Rubens
A Consequência da Guerra, 1637-38
Óleo s/tela 206 cm × 345 cm
Palácio Pitti, Florença

Rubens,

Detentor de um estilo próprio, Rubens arrebata, nos seus quadros cheios de cenas complexas, cores mais suaves revelando detalhes pormenorizados ao contrário dos seus congéneres italianos. O seu talento foi rapidamente reconhecido alcançando um lugar de destaque no mundo das artes do século XVII (BARROCO). Contratado pelo duque de Mântua, Vicenzo Gonzaga, para quem passou a trabalhar com dedicação total por um período de tempo significativo, foi conquistando prestígio na corte ganhando influência com pessoas importantes e poderosas. Homem de confiança do duque de Mântua desempenhou várias missões diplomáticas em Espanha e em Itália.

Rubens, que nunca deixou de pintar, vivenciou os horrores da guerra (Guerra dos 30 anos, 1618-1648), uma série de conflitos travados sobretudo no centro da Europa, actual Alemanha, envolvendo vários estados. Inicialmente estes conflitos estavam enraizados numa disputa de cariz religioso entre Protestantes e Católicos acentuando os antagonismos das duas facções evoluindo rapidamente para contendas entre os vários principados germânicos. O Sacro Império Romano-Germânico,  católico, instrumento político da família dos Habsburgos, perdia influência para a Alemanha Luterana e via-se ameaçada pelo poder crescente dos Suecos e, principalmente, dos Franceses. À medida que o conflito se desenhava as tensões religiosas agravavam-se na Alemanha, reinado de Rodolfo II, período durante o qual foram destruídas muitas igrejas protestantes. Este conflito devastador, talvez, o maior na história europeia, começou com uma disputa religiosa, dita "Palatino-Boémia" (1618-1625), numa segunda fase o conflito assumiu um carácter internacional numa altura em que os estados germânicos protestantes buscavam ajuda no exterior contra os católicos; o envolvimento dinamarquês (1625-1629), seguida da intervenção sueca (1630), terminou com o envolvimento dos franceses (1635-1648) agora numa luta pela hegemonia na Europa Ocidental, travada pelos Habsburgos e a corte de Luís XIV, Rei Sol, recentemente empossado (1643).

É neste contexto histórico que Rubens pintou “Consequências da Guerra, 1637-38”. Numa pincelada gestual imprimindo movimento às formas são revelados todos os detalhes. Marte, deus romano da guerra, que é a figura principal apresenta-se de couraça e capacete empunhando a espada, enfatizado por uma capa vermelha, espezinhando um livro e um desenho: símbolo da violência que a guerra impõe à cultura de qualquer povo. A destruição protagonizada por Marte é impedida por Vénus, deusa do amor, atraindo a atenção de todos aqueles que sofrem os horrores da guerra. Vénus esforça-se por conter Marte e manter a paz coadjuvada por Cupido e Amors –cupido romano- (Omnia vincit amor et nos cedamus amori) – o amor tudo vence, numa alusão a Vergílio (éclogas X). No chão podemos ver as setas e um ramo de oliveira que quando juntas ao caduceu significam concórdia. Vénus é representada nua, visão clássica, suplicando melancolicamente a Marte, num derradeiro esforço para manter a paz.

Se há características formais que definem Rubens é a representação feminina, nomeadamente os nus. Vénus com os rolos e colares preciosos adornando o penteado associado à nudez manifesta em formas roliças dão configuração à mulher “rubeniana”. (Ver “O Desembarque em Marselha" de Maria de Médicis, “O Julgamento de Páris”, “As três Graças”, “Vénus ao Espelho”, etc.).

Numa paleta harmónica, os contrastes diferenciam-se dos pintores tridentinos atingindo uma atmosfera pictórica que fará escola no norte europeu.

É nesta dicotomia (Guerra e Paz) que a cena se desenrola: do lado direito a Fúria de Alecto (encarnação grega e romana da raiva: ira implacável ou incessante*) arrasta Marte para o seu propósito destrutivo erguendo uma tocha. Nas trevas podemos observar dois monstros simbolizando os efeitos da guerra, a Pestilência e a Fome, acentuando o dramatismo onde põem em causa a Harmonia representada pela mulher segurando em vão o alaúde, assim como o Arquitecto desesperado agarrando o compasso. No âmago deste caos uma mulher tenta salvar o filho.

Do lado esquerdo da pintura, o Templo de Janus –deus da mudança- aparece com a porta entreaberta.

Numa referência aos poemas de Ovídio, Fasti, era usual na Roma Antiga, o Templo de Janus ser fechado para indicar tempos de paz, enquanto uma porta aberta indicava guerra.

Toda a composição se desenrola num grande eixo (diagonal descendente, da esquerda para a direita) e deixei para o fim a mulher de negro, Europa, representando o mundo cristão que se digladiava infringindo o maior dos sofrimentos aos seus povos.


*Eneida de Virgílio e Inferno de Dante

Peter Paul Rubens, Desembarque em Marselha, 1622-25

Peter Paul Rubens Desembarque em Marselha, 1622-25 Óleo s/tela 394 × 295 cm Museu do Louvre

Peter Paul Rubens
Desembarque em Marselha, 1622-25
Óleo s/tela 394 × 295 cm
Museu do Louvre

Maria de Médicis, a grande banqueira.

A família Médicis era credora de uma avultada quantia da coroa francesa (600.000 coroas). Houve contactos entre as duas famílias. E após algumas diligências diplomáticas seguiram-se trocas de cartas de amor, envio de retratos a óleo autenticando quão bela era a donzela. As confidências partilhadas deixaram Henrique IV, Rei de França, rendido aos dotes de Maria de Médicis.

Rubens retrata “O desembarque em Marselha” (data da pintura: 1621-1625) da futura rainha de França, Maria de Médicis, em 03 de Novembro de 1600, com toda a pompa e circunstância: os gestos, as roupas, os detalhes de uma paleta de cores cuidadosamente distribuída traduz a excitação e a agitação provocado por tal acontecimento.

Ao invés da tradicional composição plástica barroca, de fazer incidir a atenção nas áreas iluminadas por oposição ao fundo, zonas escuras, altamente contrastadas, Rubens recorre à cor vermelha, nomeadamente a panejamentos, para deslocar a atenção para o/s “ponto/s forte/s”. É neste jogo cromático e nos pequenos detalhes formais que a cena se desenrola, não deixando indiferente o observador que percorre o olhar pelas sucessivas diagonais implícitas da composição.

Paradoxalmente podemos considerar que este quadro não é um mas, sim, dois quadros; e contrariamente a todas as regras de equilíbrio formal, de uma pintura de paisagem, este quadro foi feito na vertical provocando, intencionalmente, uma leitura dupla. Assim, a parte inferior do quadro, onde as três ninfas ajudam Neptuno a encostar a Nau rivaliza, em estatuto de primeiro plano, com o desembarque de Maria de Médicis acompanhada em todo o seu esplendor majestoso por um homem, com elmo, vestido com um manto azul bordado a ouro com flores-de-lis representando iconograficamente a França. A outra mulher, com uma coroa de torres, representa a cidade de Marselha. A deusa da Fama* anuncia com trombetas douradas o desembarque da rainha em França, tudo isto no plano superior do quadro. Contudo, Rubens apesar de ter partilhado a tendência típica da época barroca, presente nas cores exuberantes, na riqueza dos trajes, nos detalhes dourados, não deixou de reflectir o classicismo presenta em cenas mitológicas. Formalmente a composição assenta em simetrias dinâmicas apoiadas em sucessivas diagonais sublinhadas pela torção das figuras mitológicas.

Rubens imprimia à pintura um clima de triunfo mundano, e dizia: “O importante não é viver muito, mas viver bem!”.


*Fama, a deusa de 100 bocas

A Fama, divindade alada, filha de Titã e Geia, famosa na Roma Antiga, cultuada no mundo contemporâneo, era mensageira de Júpiter, tinha a cara de louca e voava à frente do seu cortejo, disseminando mentiras e verdades por suas 100 bocas. O poeta Virgílio (71 a.C.-14 d.C.) a cantou como o mais rápido dos flagelos por causa de "sua mobilidade", de onde vinham "suas forças que ela aumenta correndo. Pouco temível, a princípio, em breve sobe aos ares e , com os pés presos no chão, esconde a cabeça nas nuvens. Monstro horrível, voa de noite entre o céu e a terra e nunca dorme, de dia espreita do cimo dos palácios, no alto das torres, amedrontando as grandes cidades, semeando mentiras e verdades".

O Rapto de Europa, Peter Paul Rubens

Peter Paul Rubens,Rapto de Europa, 1628/29Museo del Prado

Peter Paul Rubens,

Rapto de Europa, 1628/29

Museo del Prado

Amores proibidos com um final feliz. A bela Europa terá sido seduzida pela opulência de um toiro que se deitou aos seus pés com ar pacífico e de um olhar ternurento. Primeiro afagou-o, depois sentou-se-lhe no dorso e depois de algumas carícias trocadas o touro empreendeu um voo por cima do oceano. A pobre princesa fenícia ficou assustadíssima. Mas não tardou a perceber que o raptor só podia ser Zeus disfarçado, pois ao longo da sua viagem verificou que das ondas emergiam peixes, tritões e sereias a acenar-lhes num cortejo nupcial. Até Posídeon apareceu agitando o seu tridente. Da união de Zeus e Europa nasceram três filhos: o valente Sarpédon, o justo Radamanto e o lendário Minos, rei de Creta.

Europa coroada deu nome a todo o território a Ocidente…

Artemisia Gentileschi

Artemisia Gentileschi (Roma, 1593 – Nápoles, 1653)Judith e a sua Serva (1613-14)Óleo s/telaPalazzo Pitti, Florence

Artemisia Gentileschi (Roma, 1593 – Nápoles, 1653)

Judith e a sua Serva (1613-14)

Óleo s/tela

Palazzo Pitti, Florence

Os estádios (os direitos humanos na sua plenitude) em que se encontra a Mulher nos mais diversos cantos do mundo permitem que ainda se fale num dia internacional da mulher. Neste dia internacional da mulher (8 de Março) deverá, sobretudo, discutir-se o papel da mulher na sociedade assim como o seu contributo, ou a falta dele.

Inúmeras mulheres poderiam ser recordadas, enaltecidas, pelos seus feitos, pelo sofrimento ou pela humilhação infringida, neste dia. A minha singela homenagem sintetizada em Artemisia Gentileschi a primeira mulher a entrar para a Academia de Arte de Florença.

Nota: texto publicado em ethos no dia 8 de março 2012