Jeanne Duval - négresse fatale

Edouard Manet, Jeanne Duval: La Maîtresse de Baudelaire, 1862

watercolour,

(17 x 24 cm)

Kunsthalle, Bremen, Germany

Manet tinha 30 anos quando pintou esta horrível e triste aguarela. Uma perna desarticulada que sai de um vestido rodado sem se antever implicitamente a ligação estrutural com o restante corpo, uma mão desproporcionada suspensa no canapé e um rosto melancólico deixa antever a decadência de um corpo que outrora foi símbolo de sensualidade, de beleza, de transgressão e de mistério. Trata-se de um esboço. Um apontamento rápido de alguém que mereceu atenção. Um estudo preparatório para uma pintura a óleo do mesmo autor[1]. O seu nome era Jeanne. Jeanne Duval era uma mulher mestiça, “négresse”, que viveu em Paris. Os seus traços exóticos não passaram desapercebidos ao gosto parisiense e em particular a Charles Baudelaire. Viveu numa Paris que se rebelava contra o “bom gosto” das academias. Numa cidade que pululava de vida e de progresso. Numa comunidade artística que paulatinamente se insurgia contra o conformismo romântico. É nesta nova realidade que a Jeanne Duval se move. Uma mulher de vida dissoluta, bailarina e amante incondicional.

Não sabemos as suas origens (provavelmente vinda do Haiti), nem o seu verdadeiro apelido (Duval, Lemer, Naeltjens, Prévost, Prosper, foram também usados), nem a sua data de nascimento, nem a data da sua morte. Uma identidade mantida em segredo, suportada pelo preconceito racista da sociedade francesa do século XIX e pela vida arrebatada vivida nos extremos. Os seus mais directos delatores haveriam de a acusar de perversões, de ser inculta, ou simplesmente condená-la ao ostracismo. Eis o retrato mais fiel de uma mulher que teima permanecer incógnita e, ao mesmo tempo, nos fascina.  Courbet no quadro Atelier do Pintor[2], 1855, retratou-a junto do seu amante. Porém, descreve-a como uma “negra ao espelho”, que se encontra no lado direito por cima de Baudelaire a ler e como forma de justificar o seu acto apaga-a do escol de amigos do pintor. É um fantasma na tela do pintor, é um borrão. Provavelmente terá sido uma maneira eufemística de justificar o estigma racista!? Ou foi para evitar algum escândalo? Espantem-se! O próprio Courbet, autor do quadro “L’Origine du monde[3] - A Origem do Mundo” (1866), a censurar a figura incómoda. Não me parece verosímil. Jeanne dá-se a conhecer através das camadas de tinta sobrepostas que teimam a ocultá-la. Jeanne não é uma figura retratável, ou passível de apresentação pública (talvez porque Courbet tenha apresentado este quadro a um Júri para a Feira Mundial de Paris, 1855, e não quisesse ferir o “bom gosto” dos jurados[4]). Não há margens para dúvidas de que a figura, quase impercetível a assombrar a pintura, é a Jeanne Duval. Encontramo-la no preconceito que a tentou rasurar. Adivinhamo-la na misteriosa história de um amor tempestuosa mantida com Charles Baudelaire. A verdadeira Jeanne Duval é aquela que corre como se fosse um fluido na pena do “poeta maldito”. Sabemo-lo nas imagens poéticas vertidas em suor e ardor romântico em “Flores do Mal”.

Gustave Courbet, Atelier do Pintor, 1855. [361X598 cm] Museu D’Orsay

Baudelaire depois de ter recebido uma avultada herança acomodou Jeanne (a sua “vénus negra” conforme Baudelaire gostava de chamar) num apartamento perto de si, na Île de la Cité. O poeta não lidou bem com a gestão da fortuna recebida e um ano passado a vida de desafogo se tinha esvaído. Porém, Jeanne Duval não era simplesmente a sua amante, era a fonte, uma carniça[1], vivida e testemunhada pelo poeta:

...

As pernas para o ar, como uma mulher lasciva,

Entre letais transpirações,

Abria de maneira lânguida e ostensiva

Seu ventre a estuar de exalações.

 

...

“negra ao espelho”

A amante que o poeta mais amou era símbolo da beleza perigosa. Jeanne era o mistério de uma mulata, a paixão, a transgressão, o corpo poiético para Baudelaire. Ela era a “amante das amantes” dedicando-lhe vários poemas (Le Balcon, Parfum exotique, La chevalure, Sed non satiata, Le sepent qui danse e Une charogne). Tendo sido considerada uma literatura obscena[2] pelo promotor Ernest Pinard que condenou o autor e o seu editor, justificando “insultar a moralidade pública e religiosa e a boa moral”. Se a condenação abalou o frágil corpo do poeta, a “négresse” transformou-se em ópio para a sua escrita poética. Os amantes entregaram-se a uma vida de excessos, álcool e drogas. Abatido pelo julgamento, mas não pela paixão, Baudelaire procurava a essência dos seus próprios limites criativos. Haveriam de partilhar também a doença degenerativa (sífilis) que lhes foi fatal. O “poeta maldito” morreu sem que não deixasse de mencionar o seu tormento: “quis extrair a quinta essência de tudo, [e a “négresse”] deu-me a sua lama e eu transformei-a em ouro”. A mulher que inspirou alguns dos mais belos poemas deste período [realismo oitocentista] definhou passados alguns anos. Morreu sem deixar o seu testemunho. O seu rasgo indelével e tumultuoso com o poeta emergiu em “As Flores do Mal”, onde Baudelaire anotou: “Neste livro atroz, pus todo o meu pensamento, todo o meu coração, toda a minha religião (travestida), todo o meu ódio”.

Deixemo-nos embriagar pelo génio das Flores do Mal, que tanto perturbou a sociedade parisiense, e acantonemo-nos na assombrada aparição. Jeanne é um fantasma na nossa consciência colectiva: o racismo.

 

Texto, 2023 © Luís Carvalho Barreira


Jeanne Duval (Lemer, Naeltjens, Prévost, Prosper)

Fotografada por Félix Nadar

Uma Carniça [As flores do mal, Charles Baudelaire]

 

Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos

Numa bela manhã radiante:
Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos,

Uma carniça repugnante.

 

As pernas para cima, qual mulher lasciva,

A transpirar miasmas e humores,
Eis que as abria desleixada e repulsiva,
O ventre prenhe de livores.

 

Ardia o sol naquela pútrida torpeza,

Como a cozê-la em rubra pira
E para o cêntuplo volver à Natureza

Tudo o que ali ela reunira.

 

E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça

Como uma flor a se entreabrir.
O fedor era tal que sobre a relva escassa

Chegaste quase a sucumbir.

 

Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço,

Dali saiam negros bandos
De larvas, a escorrer como um líquido grosso

Por entre esses trapos nefandos.

 

E tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga,

Que esguichava a borbulhar,
Como se o corpo, a estremecer de forma vaga,

Vivesse a se multiplicar.

 

E esse mundo emitia uma bulha esquisita,

Como vento ou água corrente,
Ou grãos que em rítmica cadência alguém agita

E à joeira deixa novamente.

 

As formas fluíam como um sonho além da vista,

Um frouxo esboço em agonia,
Sobre a tela esquecida, e que conclui o artista

Apenas de memória um dia.

 

Por trás das rochas, irrequieta, uma cadela

Em nós fixava o olho zangado,

Aguardando o momento de reaver àquela

Carniça abjeta o seu bocado.

 

– Pois há de ser como essa coisa apodrecida,

Essa medonha corrupção,
Estrela de meus olhos, sol da minha vida,

Tu, meu anjo e minha paixão!

 

Sim! Tal serás um dia, ó deusa da beleza,

Após a bênção derradeira,
Quando, sob a erva e as florações da natureza,

Tornares afinal à poeira.

 

Então, querida, dize à carne que se arruína,
Ao verme que te beija o rosto,
Que eu preservarei a forma e a substância divina

De meu amor já decomposto!



[1] Título do poema: Baudelaire, Charles, As Flores do Mal, Editora Relógio D’Água, 2003. Tradução: Maria Gabriela Llansol

[2] Em 1857, seis poemas considerados particularmente infames foram retirados da venda e só em 1949 essas “peças condenadas” foram reintegradas em Fleurs du mal.

[1] Edouard Manet, La Maîtresse de Baudelaire, 1862, oil on canvas, 90 x 113 cm, Szépmüvészeti Müzeum, Budapest, Hungary

[2] A obra tem como título “O Atelier do Pintor”, seguido de um subtítulo muito sugestivo: “Alegoria Real que define uma fase de sete anos da minha vida artística e moral”. “Em Paris, no Museu d"Orsay, encontra-se uma obra monumental de Gustave Courbet, uma alegoria real, pintada em 1855, intitulada O Ateliê do Pintor. A pintura representa o artista diante da tela, rodeado dos seus modelos.” in site RTP

“No primeiro grupo, os da direita, podemos reconhecer o perfil barbudo do colecionador de arte Alfred Bruyas, e atrás dele, de frente para nós, o filósofo Proudhon. O crítico Champfleury está sentado em um banquinho, enquanto Baudelaire está absorto num livro. O casal em primeiro plano personifica os amantes da arte e, perto da janela, dois amantes representam o amor livre”. in site: Musée d’Orsay

[3] Gustave Courbet, L’Origine du monde, 1866. (46X55 cm) Musée d’Orsay. Assunto: vulva, mulher.

[4] Esta obra foi recusada pelo júri da Feira Mundial de Paris de 1855. Courbet, com a ajuda de Alfred Bruyas, abriu sua própria exposição (O Pavilhão do Realismo) perto da exposição oficial; este foi o precursor dos vários Salon des Refusés

William Turner, "Death on a pale horse", c.1825-30

William Turner, Death on a pale horse (?), c.1825-30

William Turner, Death on a pale horse (?), c.1825-30

Cavalgar em memórias revoltas.

No início da carreira artística, William Turner (1775-1851), pintou pitorescas paisagens inglesas arrecadando elogios dos seus comissários galeristas e coleccionadores de arte. A pintura e o sucesso artístico de Turner só tinham paralelo com as obras do seu contemporâneo John Constable (1776-1837): os grandes pintores românticos do Reino Unido. E, nas palavras de Simon Schama[1], “Turner é, acima de tudo, um dramaturgo da luz, o mais estupendo que a Inglaterra produziu”. Turner é, sem dúvida, um dos grandes pintores do século XIX, período de grandes transformações sociais e culturais. O romantismo brotou da interacção do indivíduo com a natureza, e com a sua natureza, como forma de expressão artística. A arte romântica testou os limites do eu, exacerbando-o. Ao mesmo tempo foi sondado o lado mais oculto do ser humano tornando-o mais evidente: o carácter, os sentimentos, a dor e a penosa existência do Ser. Esta vertente egocêntrica dos românticos levá-los-á a enveredar por caminhos solitários e sombrios: no refúgio contemplativo de, Caminhando sobre o mar de névoa (1818) de Caspar Friedrich; na complacência melancólica e soturna da música Robert Schumann (Traumerei Op. 15); na desilusão do ideal revolucionário na obra Guerra e Paz de Leo Tolstoy,  pelo Pierre Bezukhov inicialmente um adepto fervoroso dos ideais saídos da Revolução francesa[2]; nos horrores da guerra, de que Goya retrata com veemência as atrocidades em O Fuzilamento de 3 de Maio (1808); nas causas políticas d’ A Liberdade guiando o povo (1830) de Delacroix; no “morrer por amor”, recuperado do  medievalismo de Tristão e Isolda (ópera em três actos, 1865) de Richard Wagner; no assombro da natureza Entre as montanhas de Sierra Nevada, 1868 de Albert Bierstadt; no lânguido e doentio perfil romântico de O Pesadelo (1790-91) de Johan Heinrich Füssli; no simbolismo mórbido e extremado da Ilha dos Mortos, 1880, de Arnold Böcklin. Em suma, na dispersão do carácter individual constituindo-se como a principal leitmotiv da faculdade de espanto: o sublime. É nestas forças poderosas da natureza romântica que o sublime, podendo ser uma mescla de assombro, horror e deleite, se estabelece “na racionalidade necessária entre os homens e na certeza assustadora da morte[3]”. A Morte será, talvez, o tema mais perseguido pelos românticos: eles morrem erraticamente por causas. 

E é em Turner, na pintura em apreço, que a morte assume o ideal romântico com maior acuidade e originalidade. A morte apresenta-se como uma obra aberta, derrotada, inacabada, literalmente inacabada... em William Turner. Mas, o que terá levado Turner a pintar este quadro? O tema é seguramente a Morte. Supõe-se que terá sido pintado entre 1825 e 1830, período em que se sucederam vários infortúnios na vida do artista: a doença da mãe, internada num hospício, a morte do amigo Walter Fawkes, em 1825, e quatro anos mais tarde, em 1829, a morte do pai e, para completar o seu estado anímico, o facto do seu estado de saúde se ter agravado, recorrendo a “estramonina, substância narcótica extraída do estramónio, que excitava ainda mais sua imaginação sempre hiperactiva[4]”. Todos estes acontecimentos poderão ter concorrido para que Turner pintasse este quadro, que não está assinado, nem datado! O próprio título pelo qual é uma presunção a posteriori. Ao longo do tempo assistimos à transformação de um Turner figurativo, com preocupação pelos detalhes, para algo completamente diferente, uma pintura difusa a explorar cada vez mais a plasticidade, i.e., valorizando os materiais e a maneira como eles são utilizados.

De todas as pinturas observadas na Tate Gallery, em Londres (1988), este quadro foi o que mais nos impressionou. Não tanto pelo formalismo representativo, mas pela descontinuidade técnica e pictórica. Turner utilizava, normalmente, tinta a óleo, em camadas sucessivas dando corpo à pintura, em várias demãos, rasgando o espaço cromático em sulcos provocados pelas rápidas pinceladas. A utilização de outros materiais e ferramentas, como a espátula, ou mesmo recorrendo às unhas (ele tinha orgulho em mostrar as unhas encardidas cheias de tinta), adensam a tensão corpórea tornando a pintura pastosa, porém, luminosa e vibrante. À medida que o uso de cores quentes, nomeadamente os vermelhos, os ocres e os amarelos, ganham maior acuidade [nesta série de trabalhos] o seu carácter irascível é introduzido com agressividade nas suas telas, tornando-as cada vez mais ambiciosas e visionárias[5]. Nesta pintura apresenta um esboço de um cavalo sugerido pelas diversas velaturas finas e transparentes. A outra figura, um esqueleto, deitada no dorso do cavalo apresenta maior detalhe no desenho, podendo ser identificado como a Morte, o último dos quatro Cavaleiros do Apocalipse! Formalmente a composição ocupa praticamente a primeira parte superior do quadro deixando a outra metade num vazio [pouco compreensível a nível formal e estético], quiçá, ainda à procura de um fim. Adensado por uma paleta de cores muito próxima e pela anulação do detalhe [desenho] das figuras, reforça o efeito misterioso e terrífico, ao mesmo tempo. A morte, saída de uma atmosfera encoberta [utilizando uma mancha preta; forma recorrente para aglutinar a composição] encontra-se prostrada e de mãos caídas. Aparece aqui derrotada, caindo do dorso do cavalo como se fosse um fantasma. É uma luta entre a Morte e o artista. E quis o destino que este quadro não passasse de um esboço, de um transcendente borrão, conferindo-lhe contemporaneidade.

É uma sublime obra inacabada!


Texto: 1988-2020 © Luís Carvalho Barreira


 [1] O Poder da Arte, Companhia das Letras, São Paulo, 2010. pág. 288.

[2] Outros exemplos: na 5ª sinfonia, hino à alegria, de Ludwig van Beethoven que inicialmente a dedicou a Napoleão Bonaparte, inscrevendo seu nome na partitura e posteriormente rasurada, assim como na destruição do busto do imperador num acto de fúria; e, por fim, na obra de um ilustre pintor português, Domingos Sequeira (1768-1837), que foi, sucessivamente, partidário da invasão francesa pintando uma alegoria, Junot defendendo a cidade de Lisboa (1808), da aliança inglesa (Apoteose de Wellington, 1811), da revolução liberal (retratos de 33 deputados, 1821) e da Carta Constitucional (D. Pedro IV e Maria II, 1825). Uma época conturbada socialmente fazendo com que os desenhos das nações se fundamentassem por vínculos ao passado distante, medieval, como forma de legitimação das nações: os nacionalismos. 

[3] Schopenhauer, 1788-1860, p.59

[4] O Poder da Arte, Companhia das Letras, São Paulo, 2010. pág. 288.

[5] “Certa vez, sir George Beaumont o criticou por inaugurar “a escola branca”. Agora dizia-se que ele era vítima da “febre amarela”, caso de Mortlake Terrace (1827), paisagem sobre o Tamisa envolta numa luz dourada”. in O Poder da Arte, pág. 301.



Adoração dos Magos

Domingos Sequeira, A Adoração dos Magos, 1828Créditos: Museu Nacional de Arte Antiga

Domingos Sequeira, A Adoração dos Magos, 1828

Créditos: Museu Nacional de Arte Antiga

Este magnífico quadro, A Adoração dos Magos, 1828, comprado recentemente pelo Museu Nacional de arte Antiga, em crowdfunding[1], foi pintado por Domingos Sequeira no exílio em Roma em 1828. Domingos Sequeira já havia estado em Roma, na Academia Portuguesa, com uma bolsa de estudo dada por D. Maria I, onde permaneceu desde 1788 até 1795, recebendo aulas de desenho e pintura por parte do mestre António Cavallucci. Reconhecida a sua obra pictórica por parte do poder político e religioso, o seu fervor Liberal levá-lo-á ao exílio em 1823. Impedido de regressar a Portugal, após a revolta da Vila-Francada[2] (27 de Maio de 1823) pondo termo ao “movimento vintista”, Domingos Sequeira acabou por se fixar em Roma (1826) realizando, por ventura, as suas três melhores obras pictóricas: A Adoração dos Magos, 1828; Vida de Cristo, 1828 e Juízo Final, 1830. Aos 69 anos morreu naquela cidade, sem nunca ter regressado a Portugal, encontrando-se sepultado na Igreja de Santo António dos Portugueses (Roma).

A Adoração dos Magos, uma das obras mais representativa do romantismo português é, sem dúvida, uma pintura singular. A minúcia do tratamento plástico das figuras deixando antever ainda um formalismo neoclássico, é contraposto por uma pintura onde as personagens se diluem na paisagem fazendo parte dela. Valorizada por uma estética poética e romântica, verificável no numeroso séquito, que assiste ao momento em que os reis Magos obsequiam o menino Jesus, a pintura de Domingos Sequeira ganha outra dimensão plástica. Toda a cena é composta por personagens saídas de contos das mil e uma noites — em voga e muito querido exotismo otomano por parte dos românticos —, fazendo-se transportar por camelos, por elefantes, alguns a pé empunhando uma sombrinha chinesa, outros trajando com os mais belos tecidos, diluindo-se na paisagem. A universalidade do acontecimento alcança uma outra leitura reforçada pelo desenho e pela plasticidade encontrada. Envolta numa atmosfera dramaticamente pintada (ao jeito de Turner), o céu adquire uma dimensão apologética da luz vinda do astro rei. A luz divina que é projectada dá enlevo à presença dos Reis Magos conseguindo, assim, uma ideia de “transcendência” em sintonia com o tema bíblico concentrando o olhar do observador no essencial: o nascimento de Jesus.

pormenor: A Adoração dos Magos

pormenor: A Adoração dos Magos


Texto, 2016©Luís Barreira


[1] Financiamento colectivo. Consiste na obtenção de capital para iniciativas de interesse colectivo através da agregação de múltiplas fontes de financiamento, em geral pessoas físicas interessadas na iniciativa.

[2] Sublevação militar, encabeçada pelo infante D. Miguel, que levou à abolição da Constituição Política da Monarquia Portuguesa de 1822 e ao restabelecimento, ainda que mitigado, do absolutismo.

Goya, La Maja desnuda, 1800

La Maja desnuda de Francisco Goya

Francisco de Goya (1746-1828)Pepita Tudó "La Maja desnuda", 1800Dimensões: 97 cm x 190 cmMaterial: Tinta a óleoLocalização: Museu do PradoCriação: 1797–1800

Francisco de Goya (1746-1828)

Pepita Tudó "La Maja desnuda", 1800

Dimensões: 97 cm x 190 cm

Material: Tinta a óleo

Localização: Museu do Prado

Criação: 1797–1800


Os mistérios de “La Maja desnuda, c.1800” uma “obra menor” no percurso artístico de Francisco Goya?!

 

Goya, aos dezassete anos, transferiu-se para Madrid onde estudou com Anton Raphael Mengs, pintor da corte espanhola. Depois de duas tentativas (1763-66) foi recusada a entrada na academia de Belas Artes. Mais tarde, em 25 de abril de 1785, depois da morte de Carlos III e da coroação de Carlos IV, foi nomeado "Primeiro Pintor da Câmara do Rei", tornando-se o pintor oficial do monarca e da sua família. É com este estatuto que Goya se torna num retratista da corte e da nobreza espanhola acompanhando o gosto do academicismo vigente. Goya realizou inúmeros retratos e, entre muitos, destacamos o da figura de Manuel Godoy representado, ao jeito neoclássico, como vencedor da “Guerra das laranjas” entre espanhóis e portugueses sem que tivesse grande oposição por parte dos seus beligerantes.

Manuel Godoy retratado por Goya, 1801

Manuel Godoy retratado por Goya, 1801

Quem foi Manuel Godoy?

Manuel Godoy foi primeiro-ministro de Carlos IV, Rei de Espanha. Durante as invasões francesas as suas posições dúbias tornaram-no no joguete de Napoleão acalentando a ideia de poder ser príncipe do sul de Portugal (Alentejo e Algarve), promessa feita por parte de Napoleão Bonaparte no Tratado de Fontainebleau (secreto, 1807).

A ascensão de Manuel Godoy na corte espanhola deveu-se muito ao romance que manteve com Maria Luísa de Parma, esposa de Carlos IV.

Godoy casou-se com Maria Teresa de Borbón y Villabriga, 1797 e divorciaram-se em 1808. Todavia, manteve um relacionamento escaldante com a andaluza Pepita Tudó (1779-1869) de 17 anos com quem viria a casar depois da morte de sua mulher. Feita condessa de Castillofiel, Pepita Tudó terá sido a modelo de La Maja desnuda de Goya (Tese defendida por Robert Hughes no livro Goya, 2003).

 

Mas como é que podemos enquadrar a pintura erótica de La Maja desnuda (única no percurso artístico de Goya) no movimento romântico?

A decadência das monarquias absolutistas – Ancien Régime – promovera o lado hedonista e intimista da nobreza europeia. O culto artístico no final do Barroco (O Rococó) era de um naturalismo erótico, muitas das vezes camuflados em histórias mitológicas. Os desejos dos seus promotores alicerçados na futilidade das suas ações, dos encontros amorosos e na sensualidade de uma vida ociosa, eram o enquadramento da sociedade nobre e burguesa do final do século XVIII. Assim, a encomenda feita de Manuel Godoy a Goya de um nu deitado enquadra-se no espírito da arte do Rococó onde os “Boucher’s”, os “Fragonard’s”, tinham lugar de destaque nos aposentos dos seus encomendadores.

La Maja desnuda… e mais tarde La Maja vestida serviram de ostentação privada na galeria do seu ministério a par de outras obras que Godoy tinha no seu gabinete. Segundo relato de Gonzalez de Sepúlveda (referência tirada da página do Museu do Prado), possuía «vários quadros que poderiam ser observados: Vénus ao espelho de Velasquez, Vénus de Ticiano e uma (vénus) de Goya».

Ticiano, Vénus de Urbino, 1538Velasquez, Vénus ao espelho, 1648Goya, Maja desnuda, 1800

Ticiano, Vénus de Urbino, 1538

Velasquez, Vénus ao espelho, 1648

Goya, Maja desnuda, 1800

Esta obra de Goya, La Maja desnuda, (que inicialmente deu pelo nome de Gitana, conforme descrito no inventário do palácio Godoy) ultrapassou todos os limites representativos do nu, do belo clássico enquanto metáfora do ideal de beleza. O nu de La Maja desnuda é carnal, é concupiscente, oferece-se ao observador deixando a descoberto todo o corpo nos seus mais íntimos detalhes. É provocante e ao mesmo tempo vulnerável. Não obstante, a nudez de La Maja não se esconde atrás de nenhuma divindade, é identificável, tem nome: Pepita Tudó. A vulnerabilidade da amante levou Manuel Godoy a encomendar outra pintura a Goya, La Maja vestida, com as mesmas dimensões, quiçá, para colocar no verso da primeira e assim poder alternar/ocultar a menos conveniente.

Esta pintura utiliza uma paleta de cores tonais contrastada pelo claro/escuro aqui reforçado pela ausência de outros elementos formais que possam alterar a dinâmica da composição. Um fundo quase monocromático intensifica a vulnerabilidade do nu reclinado com as mãos atrás da cabeça. Ao realismo retratado do nu, incluindo as zonas erógenas (nunca antes realizado), é contraposto uma maior expressividade dada ao tratamento do drapeado, do canapé e dos tecidos envolventes. Pinceladas rápidas, sobrepostas, confere-lhe alguma modernidade plástica afastando a pintura de Goya do neoclassicismo e do romantismo da época.

“La Maja Desnuda” pintada ainda antes de 1800 tornar-se-á na pintura mais controversa no universo artístico de Goya arrastando, ainda hoje, milhares de pessoas ao Museu do Prado, em Madrid, onde está exposta desde 1901.

A genialidade de Goya.

Goya, depois de abandonar a Academia de Belas Artes, após críticas à instituição de coartar a liberdade criativa dos artistas, refugia-se na “Quinta do Surdo”, a casa de campo que adquiriu em 1819, onde pintou as mais escuras e misteriosas pinturas.

Uma doença grave (1792) e as invasões napoleónicas deixaram um Goya revoltado com a ganância de alguns; amargurado com o desrespeito pelo sofrimento dos mais desfavorecidos; indignado com os comportamentos insanos dos seres humanos. Assim, entre os anos de 1810 e 1814, produziu a sua “obra maior”, começada com uma série de gravuras (Los Desastres de la Guerra) e desenvolvida numa pintura denunciando os horrores da guerra.

Estas pinturas utilizando cores fortes, contrastes herdados do barroco (claro/escuro), pinceladas rápidas em velaturas energicamente sobrepostas conferem expressão e dramaticidade às figuras reveladas: olhares desesperados, gritos, rostos disformes, gestos que traduzem, não só um imaginário, mas o mal-estar do autor com a realidade social espanhola. “Os fuzilamentos de três de Maio, 1808” será, talvez, a obra icónica conferindo à pintura de Goya uma modernidade dentro do contexto do movimento romântico. Goya experimenta uma linguagem plástica de índole expressionista (já abordada, de certa maneira, em El Greco e em Rembrandt) e depois prosseguida por William Turner acabando por ser assumida pelos movimentos expressionistas no período de transição do século XIX/XX.



Texto de Luís Barreira ©2005-2017