Giotto - O Beijo de Judas

Giotto, O Beijo de Judas, 1304-6(pormenor)Fresco (200X185 cm)Capela de Scrovegni, Pádua

Giotto, O Beijo de Judas, 1304-6

(pormenor)

Fresco (200X185 cm)

Capela de Scrovegni, Pádua

Texto: 2002-2020 © Luís Carvalho Barreira

 

O beijo de Judas.

Vem-me à memória a música do filme Casablanca: A kiss is just a kiss / A sigh is just a sigh / The fundamental things apply / As time goes by... quando os amantes, Ilsa Lund Laszlo (Ingrid Bergman) e Richard Blane (Humphrey Bogart), se reencontram e recordam paixões que o tempo não apagou. Estas personagens dão corpo a um drama romântico. A realidade e a ficção invadem o nosso imaginário vivencial e é com dificuldade que separamos os homens das personagens. Foi sempre assim, em todas as histórias ou lendas mitológicas o Homem depositou as suas angústias, os seus medos, os seus desejos, nos deuses como forma de regrar a sua vida em sociedade.

É fascinante como a leitura feita a esta pintura, O Beijo de Judas, de Giotto, e ao seu significado, dependerem muito se nos posicionarmos do ponto de vista dos homens ou das personagens do Criador. Judas protagoniza esta dupla condição de homem e de personagem (bíblica) incumbido a difundir uma mensagem, traindo Jesus. Desde a primeira vez que tomamos contacto com esta obra, não pudemos deixar de nos interrogar sobre a mensagem humana que ela veicula. Esta pintura (fresco), para além de nos descrever uma passagem bíblica, propõe-nos reflectir, sem dúvida, sobre as relações humanas. Nas limitações dos homens. Na finitude e nos comportamentos do ser humano. Nos momentos de maior tensão que a fraqueza humana é tentada pela sua própria sobrevivência. Nos momentos aflitivos que a amizade, o amor, se manifesta no absoluto. Nas falsas idolatrias. Na prontidão para amar sem desapontar. E, sobretudo, no reconhecimento dos nossos erros como ponto de partida para alcançarmos o objectivo último: a perfeição. É tudo isto o que vemos n’O Beijo de Judas de Giotto pintado, a fresco, na capela de Scrovegni, em Pádua. Esta pintura apresenta-se aos nossos olhos com uma extraordinária tensão dramática e psicológica. Movemo-nos, seguramente, por ideais que possamos abraçar. Precisamos de tocar o outro. Precisamos de ser tangíveis no nosso semelhante sem o decepcionar. Precisamos, acima de tudo, questionar as nossas relações louvando o lado mais nobre do ser humano. É, segundo a mensagem implícita na obra pictórica em apreço, a comunhão entre a dimensão humana e a divina. Porventura, talvez possamos julgar esta pintura, com o passar do tempo e sem a carga teológica e emotiva de outrora (pelo menos para um agnóstico), segundo outros pontos de vista epistemológicos.

Giotto, O Beijo de Judas, 1304-6Fresco (200X185 cm)Capela de Scrovegni, Pádua

Giotto, O Beijo de Judas, 1304-6

Fresco (200X185 cm)

Capela de Scrovegni, Pádua

A passagem bíblica é conhecida: o beijo de Judas. Judas apresenta-se no centro da composição pictórica rodeado de várias personagens, ganhando destaque, ao denunciar a presença de Jesus: - “Salvé, Mestre! E beijou-o”. Beijou-o intensivamente, apaixonadamente, com ternura (Mateus, 26:47-50, tradução do verbo grego: kataphilein[1]) que só Ele o merece. Um gesto de amor, mas é um gesto vazio. O traidor havia combinado um sinal com eles (os judeus[2]): “Aquele a quem eu saudar com um beijo, é ele: prendam-no e levem-no em segurança” (Marcos, 14:4). Judas dá-se conta da sua finitude de homem, por ter de desempenhar uma tarefa escolhida por Deus. Da mágoa por trair o leal e dedicado amor e a amargura de ter de o denunciar, se enclausura na sua própria culpa. A culpa manifestada por Giotto, na pintura, pela inexistência da auréola. Na pintura de Giotto, o contacto visual entre Jesus e Judas é intenso, por oposição à multidão de homens armados em seu redor, gerando um efeito pungente. O céu nocturno, de azul cobalto, é tenso. Todo o ambiente celeste é recortado pelas varas, pelas tochas, pelas lanças, pelas alabardas, empunhadas numa forma de libertação ameaçadora do poder das trevas contra o Filho de Deus. O drama intensifica-se, quando Pedro (ostentando uma auréola) desembainha uma adaga e corta a orelha a Malco, o servo do sumo sacerdote[3], tendo sido prontamente impedido por duas figuras segurando as vestes com veemência. E Jesus terá praticado o seu último milagre, em vida, restituindo a aparência fisionómica de Malco, retorquindo: “guardai a espada! Pois todos os que empunham a espada, pela espada morrerão” (Mateus, 26:52). É a resposta pronta ao ódio e à violência por parte de Jesus que permanece firme e determinado diante a multidão que o persegue. É, sobretudo, uma mensagem dirigida à incapacidade dos homens em perdoar que as suas palavras são proferidas. Do lado direito, um grande número de armas empunhadas desfila ao ritmo de um corneteiro e de um dedo indicador apontado ordenando prisão “a Jesus [que] foi levado até Caifás” (João 18:24). A figura de Jesus mantem-se impávida, mas serena, resistindo ao rancor dos inimigos e às tentativas desesperadas dos fiéis amigos. Porém, Jesus deixa bem claro que a vontade do Pai era para que Ele sofresse, conforme havia sido revelado nas Escrituras (Mateus 26:52-54) e por incumbência a todos os homens feitos à sua imagem. 

Todo este enredo desenhado pelo seu Criador deixa-nos com dúvidas se Judas, de manto amarelo (a cor de deslealdade), será um traidor?





[1] https://religion.wikia.org/wiki/Kiss_of_Judas

[2] “De acordo com os evangelhos Jesus foi preso pela guarda do Templo de Jerusalém, e foi levado diante de Caifás e outros, por quem foi acusado de blasfémia. Após considerá-lo culpado, o Sinédrio entregou-o ao governador romano Pôncio Pilatos, por quem Jesus também foi acusado de sedição contra Roma”. in Wikipedia

[3] Caifás, no Novo Testamento, foi o Sumo Sacerdote judaico apontado pelos romanos para o cargo entre os anos 18 e 37.

Vénus no medievo

Christine de Pizan, Épître d’Othéa (Manuscrito)[*]Uma Dama, com vestes medievais, carrega no seu regaço inúmeros corações que são arremessados a pessoas sedentas de exaltação amorosa. É tudo, ou quase tudo... não fora uma representação de Vénus aqui…

Christine de Pizan, Épître d’Othéa (Manuscrito)[*]

Uma Dama, com vestes medievais, carrega no seu regaço inúmeros corações que são arremessados a pessoas sedentas de exaltação amorosa. É tudo, ou quase tudo... não fora uma representação de Vénus aqui interpretada à luz do humanismo tardo-medieval e julgaríamos tratar-se de uma virgem ou santa católica. É uma ilustração deveras interessante a que está patente neste manuscrito (Épître d’Othéa – Epístola de Otéia) lavrado por Christine de Pizan (Cristina de Pisano, 1363 - 1430). Ela foi uma escritora e poetisa francesa, humanista, nascida em Veneza, e autora de vários livros: ganhando maior destaque na sua obra literária O Livro da Cidade de Senhoras. Reconhecida entre os seus pares, ela foi a primeira mulher a viver do seu trabalho: a escrita. Forte defensora da condição feminina rebelou-se contra a misoginia e contra a condição de mulher na sociedade do seu tempo. A Epístola de Otéia a Heitor[1] (ou “Epistre d'Othéa a Hector”, c.1400) é um manuscrito dividido em 100 capítulos narrando várias histórias da mitologia clássica, ilustradas, cheia de significado e moral cristã. O neoplatonismo manifestado nesta obra, que foi a primeira para Cristina de Pisano, assume-se pela maneira como descreve metaforicamente a deusa Othéa (uma deusa que simboliza sabedoria e prudência) na educação moral e espiritual de um jovem cavaleiro; Hector herói troiano. É uma obra, segundo o ponto de vista da autora, de instrução moral, escrita em versos e prosa, na forma de uma alegoria, não se coibindo de manifestar o seu lado espiritual, cristão, subjacente. Assim, a ideia principal, em todos os contos, cuja referência na mitologia clássica está bem explícita, tem como objectivo desqualificar a matéria – o corpo – que encerra o mal, ao invés do espírito – da ideia, do amor manifestado através de valores morais - que é libertador e portador do bem: "a mais bela imagem do mundo inteligível[2]".

“Venus est planette oû ciel que les pay jadis appellerent déesse d'amours, pour ce que elle donne influence d'estre amoureux, et pour ce sont cy figurez amans qui lui presentent leurs cuers.De Venus ne fais ta déesse, Ne te chaille de sa promesse;Le…

“Venus est planette oû ciel que les pay jadis appellerent déesse d'amours, pour ce que elle donne influence d'estre amoureux, et pour ce sont cy figurez amans qui lui presentent leurs cuers.

De Venus ne fais ta déesse, Ne te chaille de sa promesse;Le poursuivre en est traveilleux, Non honnourable et perilleux.

Venus est planette du ciel dont le jour du vendredi est nommé, et le metal que nous appellons estaing ou peaultre est à ycelle attribué. Venus donne influence d'amours et de vagueté; et fu une dame ainsi nommée qui fu royne de Chipre. Et pour ce que elle exceda toutes en excellent beauté et joliveté, et très a- moureuse fu et non constant en une amour, mais habandonnée à plusieurs,'appellerent déesse d'amours. Et pour ce que elle donne influence de luxure, dit théa au bon chevalier que il n'en face sa déesse, c'est à entendre que en ce qui donne vice ne doit son corps ne son entente habandonner. Et dit Hermés: "Le vice de Luxure estaint toutes vertus."

Venus dont le bon chevalier ne doit faire sa déesse, c'est que le bon esperit ne doit avoir en soy nulle vanité. Et dit Cas- siodore Sus le Psaultier: "Vanité fist l'ange devenir deable, et au premier homme donna la mort et le vuida de beneurté qui lui estoit ottroyée. Vanité est mere de tous maulx, la fontaine de tous vices et la veine d'iniquité, qui l'omme met hors la grace de Dieu et le met en sa hayne."

*Manipulus florum, Superbia, az. Christine adds 'de l'omme...hayne' À ce propos dit David en son Psaultier en parlant à Dieu: "Odisti observantes vanitates supervacue."[3]

Não deixa de ser curioso que Cristina de Pisano comece por descrever Vénus como um planeta (o mais luminoso, portanto o mais bonito no céu) e que os antepassados apelidaram de Deusa do Amor. A sua forte influência nos amantes fá-los brandir os corações acompanhadas de preces. Figuras masculinas e femininas apresentam-se com as suas vestes de azul ciano à semelhança da deusa Vénus, símbolo de amor e de paixão. Porém, deixa um alerta para a “perigosidade na perseguição de tais objectivos amorosos, porque são perigosos e nada honrososVénus tem uma grande influência no amor e na imprecisão”. E o alerta continua dirigindo-se ao seu cavaleiro para que não se deixe levar pelo chamamento da deusa do amor, nem pela fraqueza do corpo, relembrando Hermes que disse que contra “o vício da Luxúria são todas as virtudes”. As virtudes teologais (Fé, Esperança e Caridade), que autora se refere, aparece aqui, metaforicamente, como um conselho ao bom cavaleiro que “a boa esperança não deve ter vaidade em si mesma”. E seguindo numa tradução literal do texto original, “a vaidade é a mãe de todo mal-estar, a fonte de todos os vícios e veias de iniquidade, que tira o homem da graça de Deus e o coloca em seu agressivo”. Nos mandamentos divinos, cristãos, a vaidade é considerada um exemplo de orgulho estando catalogado como um dos sete pecados capitais.

Por fim, o texto aparece uma citação em Latim da obra “Manipulus florum[4]: "Odisti observantes vanitates supervacue"[5], numa clara alusão a vacuidade da Vaidade. Segundo a Bíblia a vaidade é algo de falacioso, sem consideração, levando à ostentação e à idolatria.

Em suma, a Vénus pagã, símbolo do amor, da paixão, da beleza, aparece aqui com uma roupagem dual, colocada no reino dos céus e adorada por todos aqueles que acreditam no amor divino.

2000-2020 ©Luís Barreira

BIBLIOGRAFIA

· 'Épître d'Othéa' [Cod. Bodmer 49 Pizan] {Cologny, Fondation Martin Bodmer} is available online through e-codices, the Virtual Manuscript Library of Switzerland. [http://www.fondationbodmer.org/]

· 'The Epistle Of Othea To Hector: Or The Book Of Knighthood' (1904).

· An alternative contemporary set of Othea Epistle miniatures is available from Meermanno Museum in The Hague : these include descriptions of each in English (that I was too lazy to marry up with the example miniatures seen above).

· Christine de Pisan at The Middle Ages.

· Christine de Pizan wrote Othea’s Epistle to Hector (the Book of Knighthood) around the beginning of the 15th century.

· Christine de Pizan, Le livre de la Mutacion de fortune, enluminé par le maître de l'Épître d'Otéa, début XVe siècle, inv. 494.

· Christine de Pizan: Wikipedia, New Advent, CSU Pomona, UPenn.

· Tangential: Christine de Pizan The Making of the Queen's Manuscript at Edinburgh University Library.

· Charity Cannon Willard, United States (1914-2005) was a biographer of early French feminist and author Christine de Pizan (1363-1440).

· Christine de Pizan: Her Life and Works by Charity Cannon Willard (1984)

· Charity Cannon Willard at GoodReads.com

· Christine de Pizan’s The Book of Deeds of Arms and of Chivalry by Christine de Pizan and translated and edited by Sumner and Charity Cannon Willard.

SITES CONSULTADOS

· https://www.porkopolis.org/pig_artist/epistle-othea/

· http://bibliodyssey.blogspot.com/2011/06/book-of-knighthood.html

· http://www.pizan.lib.ed.ac.uk/otea.html

[*] Source gallica.bnf.fr / Bibliotèque National de France. Département des manuscrits. Français. 606

[1] “Na mitologia grega, Heitor era príncipe de Troia e um dos maiores guerreiros na Guerra de Troia, suplantado apenas por Aquiles. Era filho de Príamo e de Hécuba e irmão de Páris”.

[2] Plotino: Enéadas II, 9, 4, 27.

[3] Texto em francês medieval. Consultado em: http://www.pizan.lib.ed.ac.uk/otea.html

[4] Thomas da Irlanda (Thomas Hibernicus), escritor, antologista e indexador, formou-se na Universidade de Sorbone, que na época era a maior biblioteca da cristandade, completou o primeiro manuscrito de seu Manipulus florum (1306), uma coleção de citações oficiais.

[5] “odiai vaidades supérfluas”.

Barnabé de Módena - "Madonna Lactans"

Das muitas “Virgem do Leite” (Madonna Lactans) existentes é esta a pintura que mais me deixa estarrecido, diria que é aquela que mais me espanta, quer no sentido da composição plástica, quer no tratamento psicológico que o autor confere às personagens. Porém, o que é mais surpreendente nesta obra de arte é a dimensão humana que as personagens transmitem e que o Renascimento haveria de portar mais tarde. Podemos enquadrar esta obra no período de transição do Gótico para o Renascimento. Seguramente. Todo o programa compositivo está inserido dentro do contexto da arte gótica com nítidas influências da arte bizantina. Mas é o lado humano que as figuras apresentam lhe confere genialidade. Uma obra que rompe com a ortodoxia iconográfica medieval.

Read More