Das boas práticas que Portugal falece* para enfrentarmos a pandemia do coronavírus e outros males contagiosos. Estamos sob a ameaça viral transformada já em pandemia. O receio toma conta de nós. A ignorância contagia-nos. E o medo diz-nos para ficar em casa; por favor não sai de casa.
No séc. XIV, no grande surto da Peste Negra (1348), o médico pessoal do Papa Clemente VI, Guy de Chauliac, aconselhou-o a ter uma dieta saudável, quiçá fazer uma sangria se for necessário, e alimentar permanentemente a fogueira do seu quarto para afastar os maus cheiros. O dedicado médico, autor de Chirurgia Magna (1363), documento válido até ao séc. XVII, travou uma luta em duas frentes: a primeira, contra o obscurantismo dominante da sociedade referente à origem de tal enfermidade, atribuindo aos judeus o envenenamento dos poços e de serem hereges; a segunda, contra o surto epidémico, uma desgraça divina, pelo qual ele haveria de padecer. As pragas eram consideradas castigo divino e os escolhidos acarretavam o peso de pecaminosos. O povo em comunhão organizou-se e a receita não tardou em aparecer junto às piras redentoras. Assistem à queima dos judeus[1] e glorificam os benefícios do cilício no flagelo dos pecadores. Ganha força a ideia da auto-flagelação dentro de algumas comunidades cristãs: os Flagelantes[2]. Se a ordem social parece assegurada, o papel do médico tinha como principal tarefa, para além de cuidar das vítimas da peste, o de fazer o registo público das mortes. Segundo Byfield, também davam conselhos aos pacientes sobre a sua conduta antes da morte. E a pedido do moribundo, o médico podia recorrer ao bastão e ou à chibata para flagelar o corpo agonizante numa forma de expiação dos pecados terrenos. Contudo, outros médicos, com práticas menos ortodoxas, cuidavam dos seus pacientes administrando-lhes alguns medicamentos, mezinhas, assim como colocavam rãs ou sanguessugas nas línguas para “reequilibrar os humores” (citando Byfield). Assim, ao longo de vários séculos as práticas médicas não se alteraram muito. No séc. XVI, Nostradamus defendia que os infectados deveriam permanecer de quarentena e os restantes deveriam apanhar ar fresco. Beber água potável (tomar um sumo de rosa mosqueta[3], para os mais afortunados) era fundamental. Os cadáveres deveriam ser removidos, enterrados e polvilhados (queimados) com cal. O médico não era um feiticeiro, nem a bruxa que tudo curava. A figura do médico ganha uma dimensão terrífica que ainda hoje permanece no nosso imaginário. Para tal a indumentária inventada por Charles de Lorme, séc. XVII, tornou-se essencial no combate à peste negra e popular no fantástico colectivo. Para aqueles que se lembram da figura do pai de Mozart, no filme Amadeus, aquela figura altiva, empunhando um bastão, que a dada altura aparece envolta de manto negro encerado, chapéu de abas largas, de máscara com aberturas deixando os olhos a descoberto e um enorme bico onde, supostamente, era colocado palha embebida com algumas essências perfumadas para o proteger do ar miasmático, não é mais do que uma espécie de pronúncio da morte; é a imagem do médico que mais não faz do que sentenciar a morte.
texto, 2020 © Luís Carvalho Barreira
[*] Falece. Termo utilizado por Francisco de Holanda: Da Fábrica que falece à cidade de Lisboa (1571).
[1] Judeus queimados vivos Crónica de Nuremberg, 1493.
[2] Os Flagelantes tinham de respeitar um ritual que constava de: viajar de terra em terra durante 33 dias; autoflagelar-se na praça pública; orar a Deus; viver da caridade; vestir o uniforme dos Flagelantes que consistia numa longa túnica negra com um capuz e andar descalço. in wikipedia
[3] “Óleo de rosa mosqueta ou rosa rubiginosa, como é chamada cientificamente, é de origem oriental e nasce em clima frio e chuvoso. A extração do óleo é feita com auxílio de uma prensa e sua composição é rica em ácidos gordos insaturados como: ácido oleico e linoleico. Oferece diversos benefícios terapêuticos para a pele. Possui também vitamina A e C”. (ver: wikipedia)